outubro 07, 2021

Ferramentas brilhantes

Observava um sapateiro a martelar em solas. Toc toc toc, tac tac. Olhava para as marteladas certeiras e para o martelo com que as dava. Olhei também para um alicate que repousava na bancada de trabalho. Apreciava o brilho de uma e de outra ferramenta, aquele brilho que só as ferramentas com uso frequente têm. O homem parou e pousou o martelo. Eu peguei nele para o sentir. Reparei que, além de brilho e de lisura, o uso dá macieza e leveza ao ferro. São impressões que alteram a nossa perceção do objeto e do material de que é feito. Ao olhar a cabeça do martelo, espalmada e lustrosa de tanto uso, perguntei Se houvesse neste martelo um contador de marteladas, quantas estariam registadas? E respondi Milhões, certamente milhões. O velho sapateiro, de volta de uma bota, contou-me o quanto estima as ferramentas, pela função que têm mas sobretudo pelas memórias que guardam. Esse martelo foi utilizado por outro sapateiro, que já cá não está, que o passou para mim quando deixou o ofício. E julgo que já lhe tinha sido dado por outro. Depois acrescentou São muitas as vezes que penso em quem o utilizou. E assim mantenho viva a memória de cada um. As ferramentas sem uso, ferrugentas, são fantasmas de si mesmas; mas as que estão em uso mantêm o esplendor do trabalho que fizeram e de quem trabalhou com elas. As histórias que elas escondem.
(Na oficina do sapateiro e poeta João Santiago)

do projeto Anuário de banalidades