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agosto 11, 2025

Atacado por um IVNI

Ia eu a andar pela crista da pequena serra do Louro, perto de Palmela, já no lusco-fusco, quando um inseto, do qual vi apenas o movimento mas que me pareceu do tamanho duma abelha, passou a voar rápido por trás de mim, de imediato sentindo uma dor aguda muito forte. Parecia que tinha sido chicoteado por uma corda metálica de guitarra ou golpeado superficialmente por uma fina lâmina, passando na horizontal pelas extremidades inferiores das omoplatas. Instalou-se um ardor forte nessa linha, de onde por vezes irradiavam pequenos espasmos musculares, ora para cima, ora para baixo, também pelo braço esquerdo, chegando a causar-me um ligeiro mal-estar, próximo da náusea. Tirei a blusa, que não tinha marca de coisa alguma, nem por dentro nem por fora, para que a aragem me desse algum conforto, passando ao de leve com ela pelas costas, de modo a diminuir o ardor. Estava perplexo com o sucedido, receando que pudessem surgir piores reações a este ataque dum inseto voador não identificado. Em casa pude ver ao espelho que muito perto da extremidade inferior de cada omoplata estava uma baba rosada, plana e das dimensões da moeda de dez cêntimos. Não havia, afinal, qualquer linha, mas dois pontos onde algo foi injetado. Mas injetado como, se o inseto não pousou em mim nem entrou por baixo da blusa? No dia seguinte, apenas o ardor estava menos forte. Fui a uma farmácia, mostrei as costas e contei o sucedido, captando a atenção dos quatro farmacêuticos que estavam de serviço. Como ninguém sabia ao certo de que bicho se tratava, venderam-me uma pomada e uns comprimidos antialérgicos comuns, sugerindo-me uma ida ao hospital, caso os sintomas se mantivessem ou agravassem, o que não veio a acontecer. Entretanto pus-me a pesquisar e descobri que poderei ter sido atacado por um besouro-bombardeiro, inseto que desconhecia, mas que fiquei a saber que contém no seu corpo dois venenos em bolsas separadas, que se juntam ao serem expelidos a uma grande velocidade, atingindo uma temperatura de cem graus. Encontrei vídeos que mostram o besouro a bombardear formigas e aranhiços, que de imediato morreram ou ficaram paralisados. De facto, o forte ardor inicial que senti pode ter-se devido tanto à composição do veneno como à sua temperatura. O ardor foi diminuindo, desaparecendo ao fim de cinco ou seis dias, e as manchas das babas passados mais alguns.


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junho 17, 2025

O velho da bicicleta

Deparo regularmente com um homem e a sua bicicleta, ora subindo, ora descendo uma avenida de Setúbal, por vezes andando pelo centro da cidade e raramente estando sentado nalgum banco ou numa cadeira de esplanada. É um homem baixo, farto de cabelo escuro e de barba branca, sempre vestido de preto e com um chapéu na cabeça, da mesma cor. Sempre o vi assim, acompanhado pela sua bicicleta; nunca o vi com ninguém, nem sequer dirigir a palavra a alguém, assim como nunca vi ninguém dirigir-lhe uma palavra. Deparo com este homem há cerca de trinta anos. Ele terá agora perto de oitenta, mas sempre o achei velho, talvez por há três décadas ele me parecer isso por eu ser novo. Os seus olhos pequenos, escuros e recuados, pouco se movimentam, e o seu olhar vago nunca foca nada de concreto. Tem um alto esférico e luzidio na fronte, ao lado do olho direito, do tamanho do bugalho dum carvalho: um tumor que parece prestes a rebentar. Anda devagar, como sempre me lembro de o ver, com a sua bicicleta pela mão, ao longo de várias centenas de metros, às vezes com um atrelado onde leva compras. Só o vi montado uma ou duas vezes, não mais. Sei deste homem apenas aquilo que vejo dele, mas facilmente sou levado a presumir que ele viva sozinho, talvez viúvo e sem filhos, talvez desligado de família e sem amigos. Não sei onde mora, mas se tiver vizinhos imagino que nem fale com eles. A bicicleta é, acima de tudo, a sua companhia, ou a sua companheira, que o acompanha de mãos dadas, mas muda. O homem carrega uma tristeza de indiferença, com um rosto de pedra onde não se consegue esculpir um sorriso, nem uma expressão que agrave aquela que tem. Ocorre-me só agora, no momento em que escrevo estas linhas, que talvez um dia o siga para saber onde mora, por mera curiosidade; assim como me ocorre que talvez um dia meta conversa com ele, pelo menos para ver se ele sabe, consegue ou quer falar.

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maio 25, 2025

Um músico de rua

Desci a rua Augusta serpenteando entre turistas e esplanadas, lançando olhares para todo o lado, apanhando de relance alguns artistas de rua: estátuas-vivas, músicos, bailarinos e habilidosos de coisas sem mestria. Já no fim, perto do arco, deparei com um velho a tocar viola. Vestia roupas coloridas, algo circenses, e tinha na cabeça um chapéu de tecido mole e largo que lhe tocava nos ombros e quase impedia que se visse o seu rosto. Por estar sentado num banco com cerca de um palmo de altura, tinha a perna direita estendida e a esquerda um pouco dobrada, e entre elas a viola. Aproximei-me para o ouvir. Entretanto, reparei que tremia o maxilar inferior umas quatro-cinco vezes por segundo, fechando e abrindo ligeiramente a boca, como se tivesse um tipo de parkinson manifestando-se apenas na mandíbula. Afinal o homem não tocava, limitando-se a raspar com as unhas da mão direita nas cordas da viola, desafinada, e a mudar de sítio, sem qualquer lógica, o polegar da mão esquerda, que apenas pressionava as cordas mais graves. Não se tratava dum prelúdio para algo que viesse depois e, eventualmente, surpreendesse, mas de gestos infinitamente repetidos. Eu estava perante a imagem dum homem fisicamente débil e mentalmente decrépito, de olhos baixos quase semicerrados, num mundo fechado ao reboliço à sua volta. Se me tivesse ocorrido fotografá-lo não o teria feito, por um certo pudor; ocorreu-me dar-lhe uma moeda, mas não dei, não sei dizer porquê.

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março 02, 2025

Dois sonhos na mesma noite

Tive dois sonhos assustadores na mesma noite, pareceu-me que um a seguir ao outro, como se fossem episódios dum mesmo filme com um curto intervalo entre eles. No primeiro estava eu numa pequena habitação de campo, toda arranjadinha, confortável. Mas o sonho passava-se na sala dessa casa, que tinha uma casa-de-banho a um canto, sem parede ou porta a separá-la. A longa banheira tinha um terço da sua altura com água. No canto do teto sobre a banheira havia uma abertura, como um buraco com cerca de meio palmo, da qual caíam grandes dejetos humanos sólidos, vulgo cagalhões, para dentro da banheira. Eu estava espantado e enojado com aquilo, mas uma mulher que procedia à recolha dos dejetos e consequente limpeza da banheira, explicou tratar-se duma coisa normal caírem os dejetos do andar de cima para aquele. O segundo sonho passava-se na sala duma pequena e antiga moradia que estava em obras. Era uma sala-cozinha completamente de pantanas, sem móveis nem armários, com partes demolidas, quase às escuras. Estava uma tempestade e caía água do teto para uma poça de água no chão, todo escaqueirado pelas obras. Um homem retirava a água com uma pá, para os lados e contra uma parede, mas ela voltava para a poça, onde se misturava com cacaria e detritos da obra.

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outubro 14, 2024

Cumprimentos de desconhecidos

Há três dias, depois de sair do ateliê e logo após virar uma esquina perto, deparei com um homem baixo, de aspeto humilde e pobre, com um boné com a pala um pouco para o lado, que vinha em sentido contrário. Olhou para mim, fez um sorriso e estendeu uma mão fechada na minha direção. O gesto pedia um cumprimento, a que eu correspondi do mesmo modo, tocando com a minha mão fechada na dele. Não parámos nem trocámos palavras. Anteontem, andei descontraidamente por um jardim onde dois rapazes com cerca de dez anos jogavam à bola, chutando-a de um para outro a uma certa distância. Um deles, logo após ter pontapeado a bola, virou-se para mim e disse "Olá!", sorrindo. Eu abrandei o passo, retribuí o cumprimento e perguntei "És bom jogador?" Ele respondeu "Sou, pois!" e eu disse-lhe "Boa!" Ontem, no mesmo jardim onde andei anteontem, passei ao pé dum homem alto que estava parado a fumar ao lado do caminho, com um cão. Virou-se para mim e cumprimentou-me com um "Boa tarde", tendo eu respondido do mesmo modo. Não parei, não houve mais conversa nem necessidade dela. Hoje, à saída do auditório da biblioteca municipal onde eu acabara de dar uma palestra, um homem cuidadosamente vestido, penteado e escanhoado dirigiu-se a mim, apertou-me a mão e disse uma frase comprida de que captei um sentido impreciso por estar ainda com a cabeça muito preenchida pelas imagens e palavras da minha palestra. Sempre achei que se as pessoais se cumprimentassem e tocassem mais, inclusive sendo desconhecidas, como aconteceu comigo em quatro dias consecutivos, as tensões pessoais diminuiriam e o relacionamento social tenderia a ser mais fraterno. Mas a sociedade incita ao individualismo e à competição, criando cada vez mais obstáculos à proximidade e à confiança mútua.

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setembro 30, 2024

Não simpatizo com certas pessoas

E muitas vezes não sei porquê. Estou a pensar em pessoas da minha cidade que até fazem coisas úteis e de alguma importância, na área da cultura, por exemplo. Mas não simpatizo com elas porquê? Simples pergunta para a qual não tenho uma resposta que encerre o assunto. Mas talvez tenha várias ou meias respostas, todas elas tontas. Será dum certo modo de quem se mostra saber mais do que os outros, do olhar de quem inquire, da expressão facial de quem despreza, da linguagem corporal de quem se exibe. Será do formato da cabeça com semelhanças às de quem tem tem algum atraso, do perfil do rosto que parece mostrar pouca inteligência, da presunção dos temas abordados, do snobismo das palavras utilizadas. Será? Não condeno as pessoas por tão pouco. Talvez parte destas minhas antipatias tenha a ver com as antipatias que algumas dessas pessoas têm para comigo, ou julgo que terão, sem que saiba porquê. 

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agosto 15, 2024

O homem porco e mal disposto

Um homem gordo como um porco, feio como não sei quê e trombudo como tanta gente que por aí anda, saiu do supermercado e dirigiu-se para o carro. Podia estar mal disposto devido a algo que se terá passado no supermercado, mas o mais certo era sofrer de má disposição permanente, o que fazia dele ainda mais feio do que seria se estivesse tranquilo. Mas o que achei ainda mais feio nesse homem gordo, e me leva a chamar-lhe porco, é que ele abriu uma porta do carro e dele tirou um maço de tabaco amarrotado que atirou para o chão, juntamente com mais dois ou três pequenos papéis, fechando depois a porta com um gesto largo e bruto, como se o seu corpo ocupasse todo o largo espaço de estacionamento. Depois entrou no carro com a dificuldade própria de quem ocupa muito espaço e seguiu caminho com a condução própria de quem está chateado com o mundo.

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julho 15, 2024

Afinal...

Afinal, ao contrário do que me pareceu, o Andreas não estava bem, como escrevi aqui há três meses. A felicidade com que fiquei ao ver reconhecida a sua mestria na azulejaria, na recente exposição do Museu Nacional do Azulejo, foi confrontada com a terrível notícia da sua morte, que aconteceu anteontem. Não é a minha felicidade ou infelicidade aquilo que quero noticiar, mas a partida do Andreas e o modo cruel como sucedeu. Eu não fui ao velório, podendo ter ido, nem irei ao funeral, podendo ir. Nunca percebi por que vou umas vezes e outras não, apesar de isso nada ter a ver com o grau de proximidade ou de estima para com a pessoa. Também não é a minha presença ou ausência das cerimónias fúnebres aquilo que quero noticiar, mas a partida do Andreas, e lembrar que deixou muita obra para apreciarmos: desenhos, pinturas, esculturas e azulejos. Além de boas memórias em quem com ele privou.

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julho 02, 2024

1 de julho, Fausto e eu

Fausto foi um dos maiores cantautores que Portugal teve. Por este rio acima, o seu disco mais notável, é uma obra-prima de criatividade e diversidade, de qualidade poética, musical, instrumental e vocal. Ouvi-o e cantei-o imensas vezes. Alguns temas são verdadeiramente enfeitiçantes, como Porque não me vês, O que a vida me deu ou Lembra-me um sonho lindo. Tive o privilégio de ver e ouvir Fausto num concerto memorável em Setúbal, no dia em que fiz 19 anos, poucos meses depois de sair o Por este rio acima. À hora do meu nascimento, Fausto cantava Navegar, navegar. Morre quarenta e um anos depois, no dia em que fiz 60 anos. Ficam os discos, as gravações de concertos, as suas canções e a vontade de continuar a ouvi-las.

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junho 15, 2024

Ideias mil

Ultimamente têm-me ocorrido ideias e ideias de coisas para pintar e de coisas para escrever. Algumas dariam boas obras, se as pusesse em prática. Mas as coisas do dia-a-dia, que têm de ser feitas, preenchem-me muito tempo, pelo que muitas dessas ideias não as alimentarei nem porei em prática. Serão opções de sobrevivência, prescindindo da arte para tratar da vida, ou tratar da vida para não sufocar com a arte.

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abril 25, 2024

50 palavras para Salgueiro Maia

Salgueiro Maia é uma das figuras que eu mais admiro da nossa história, pelo papel que teve no 25 de Abril e pela postura que revelou depois dela. Além disso, fazia anos no mesmo dia que eu e partiu de Santarém, a cidade onde eu nasci, para fazer a revolução.

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dezembro 21, 2023

O pôr-do-sol

Ao pôr-do-sol as paisagens exercem um fascínio particular, sobretudo por ser o momento evidente da passagem do dia para a noite e pelo colorido particular que a atmosfera toma. Além disso, o lusco-fusco que se segue a esse momento contribui para um efeito tranquilizador geral. E quando nessa paisagem existe água e ou nuvens e ou planície a perder de vista e ou montanhas ao longe e ou casario com luzes acesas, ficamos como que enfeitiçados e em silêncio a olhar e a sentir.

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novembro 08, 2023

48 anos depois

Fui decapando duas camas de ferro ao longo de vários meses. Estavam desmontadas, encostadas a um canto e sem uso há muito tempo, com camadas de tinta velha, cheia de falhas. Depois de finalmente pintadas e montadas, dormi numa delas, aquela em que dormi com o meu irmão até aos meus onze anos, até aos dezoito dele. Quarenta e oito anos depois de nela ter dormido pela última vez. A outra foi a primeira cama de casal dos meus pais. Nessa ainda ninguém voltou a dormir.

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outubro 29, 2023

Passagens duma apresentação cómica

Escreve romances, novelas, contos, crónicas, poesia, escrita experimental e visual, com que vai enchendo pastas no computador, fazendo às vezes pequenas edições de livros.

 

Com pseudónimo, escreve poesia e prosa erótica, pouco recomendável a moralistas e a pessoas demasiado educadas. 


Pinta a acrílico sobre tela, cartão e tecido, tendo a figura humana como tema central. Rostos, corpos vestidos ou despidos povoam a sua pintura. Fascina-o explorar plasticamente aquilo que é pessoa ou gente, em múltiplas formas, poses e atitudes.


Mede 1,76m e pesa 82kg. É careca, não por opção mas por destino, usando boina, boné ou chapéu para se proteger do frio ou do sol. Faz a barba sempre com atraso de dois ou três dias. Usa óculos devido a astigmatismo. Veste mais ou menos o que calha, sem grande exigência ou vaidade.


Quando lhe perguntam Tudo bem? não sabe o que responder, pois não sabe o que é tudo nem percebe o que é estar bem. Quando lhe dizem Santinho!, ao espirrar, responde Só às vezes.


Ajuda regularmente quem lhe é próximo e desenvolve atividades no âmbito do voluntariado cultural, sobretudo relacionadas com pintura ou poesia.


Não se importa nada que digam mal de si, pois sabe que não será aquilo que os outros dizem. Também não precisa que digam bem.


Não tem qualquer apreço por ideologias políticas ou religiosas, por serem elas as responsáveis pelas maiores atrocidades da história da humanidade.


Nunca se sente só porque está sempre acompanhado de si mesmo, com quem se dá muito bem, e dos seus mundos interiores. 


Luz nele alguma tendência para a boa disposição e uma grande vontade de ser útil.


- Sincrónicas e anacrónicas - 

outubro 03, 2023

O pastor de mau-feitio

Cruzo-me de vez em quando com um pastor e seu rebanho de cabras e ovelhas. Terá cerca de setenta anos e é seco. Parece ter secado ao sol e ao vento de tantas caminhadas. Quando o cumprimento nem sempre retribui, e quando retribui revela mau-feitio. É como é, mas não deixo de o cumprimentar por isso. Há umas semanas vimo-lo, eu e a minha mulher, de canadianas com o seu rebanho. Impressionou-nos a imagem dum pastor a conduzir o seu rebanho de canadianas, claramente debilitado. A minha mulher perguntou-lhe o que tinha, ele respondeu tratar-se de problemas de coluna. Desejámos-lhe melhoras e ele agradeceu. Depois dessa ocasião vimo-lo mais uma meia-dúzia de vezes à distância, e com as canadianas. Entretanto, passaram semanas sem o vermos e eu questionava se ele teria ficado sem capacidade de conduzir o seu rebanho. Mas há dias, ao final da tarde, demos por ele, ainda de canadianas, mais magro e de andar mais débil. Vinha na nossa direção, com três cães que, de imediato e com precisão, reagiam às suas indicações de assobios e de poucas palavras. Vai à frente!, Olha aquelas!, Vai lá, vai! Em correrias frenéticas, os cães seguravam o avanço do rebanho para que não se afastasse muito do pastor. Parámos para que, mais próximos, lhe pudéssemos falar. Como tem passado?, perguntou a minha mulher. O problema das costas está na mesma, mas agora estou com outro que me preocupa mais, respondeu com ar pesado. O que é?, perguntei. O homem balbuciou um pouco e hesitou na resposta. Encostou a mão ao peito, respondeu É aqui, soltou um choro breve que logo controlou e concluiu, Assim que chegar a casa vou para o hospital. Oh, caramba!, disse eu quando ele já me virava as costas, As melhoras! Não agradeceu, continuou o seu caminho e eu fiquei a pensar se seria aquela a última jornada do pastor de mau-feitio.

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julho 31, 2023

A leitura e o silêncio

Só se sobe o nível intelectual e cultural de alguém ou dum povo se se promover o silêncio. Para ler há que serenar e silenciar o cérebro.  Para observar e questionar, o silêncio é fundamental, pois é nele que  tudo se constrói e reconstrói. Quem malevolamente governa cria ruídos com as palavras, com os atos e as ideologias que defende. É um ruído que empobrece o espírito e dificulta a vida. A leitura é, por excelência, um motor de cultura e um fertilizante do eu. E pode mudar tanta coisa. Um problema de tantos jovens de hoje, em quase todo o mundo, é viverem em sociedades e culturas inimigas do silêncio. Quem não conhece o silêncio não consegue ler, nem o que dizem os livros, nem o que dizem os sinais do mundo.


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junho 18, 2023

Cansaço e preguiça

Passaram dezasseis dias desde a última postagem neste blogue. Não estava esquecido dele. O que tinha era um enorme cansaço que deu origem a uma grande falta de vontade e a alguma preguiça para certas coisas. As últimas semanas foram terríveis devido a exigentes trabalhos físicos (além da habitual atividade de explicador), sem os necessários tempos de repouso. Isso quase anulou o meu trabalho intelectual, a criatividade e a vontade de fazer algo que não fosse tentar descansar ou dormir nos poucos espaços livres. Por isso, não tenho pintado nem escrito. Tais trabalhos físicos já abrandaram e tendem a a abrandar mais. Só depois, o que espero seja em breve, a cabeça voltará a ter condições para repousar e criar.

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maio 02, 2023

Há quem prefira

Vivemos em democracia, com defeitos, com virtudes. Mas há quem faça dela um terreno murado, como um condomínio de usufruto limitado. E há também quem prefira a ditadura à democracia. Quando isso acontece entre quem tem poder, não admira, já que poderia exercê-lo com dureza e lucrar mais com isso, se pudesse. Mas o que me espanta é haver gente comum que deseja viver em ditadura. É gente afeta a partidos de extrema-esquerda ou de extrema-direita, parece-me que iludidos por promessas de igualdade e ou de justiça, em suma, de uma vida melhor. Algumas dessas pessoas vivem bem, outras nem por isso ou mesmo mal, mas não se apercebem que não viveriam melhor em ditadura. Ou se calhar apercebem-se, mas mesmo assim a desejam porque estão contaminados por uma ideologia. Sempre as ideologias para estragar ou piorar as coisas!


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fevereiro 07, 2023

A vespa e a formiga

Assisti e filmei uma curiosa cena envolvendo três animais, um deles morto. No asfalto duma estrada secundária quase sem movimento, uma formiga arrastava uma lagartixa morta. A lagartixa não seria adulta e, além de morta e ressequida, faltava-lhe todo o rabo; a formiga era grandita, mas nada que me fizesse suspeitar que conseguiria a proeza de arrastar a carcaça do pequeno réptil. Entretanto, enquanto freneticamente procedia à tarefa, a formiga era importunada por uma vespa, obrigando-a a largar a lagartixa após algumas investidas. Depois disso, a vespa ficou a sugar a lagartixa. A formiga, depois de se ter afastado, voltou, mas sem sucesso, bastando a indiferença da vespa para a demover de qualquer tentativa de reaver a carcaça.


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janeiro 13, 2023

Pensamento além de mim

Uso o pensamento como ferramenta para a procura de liberdade e de bem-estar, comigo e com os outros. Quero fazer do pensamento um espaço livre de influências perniciosas, mas tenho de ser muito cauteloso e atento, para que tais influências não se instalem aquando de alguma distração minha. Opiniões e ideias habilmente construídas, vindas do mundo à volta, muitas vezes carecendo de ética e de respeito, estão sempre à espreita duma oportunidade para se instalar e dominar, como faz um vírus num corpo onde entra. O meu pensamento é um templo de que sou guardião. Nele gosto de estar e de me movimentar, não quero ser prisioneiro dele. Gosto da imagem de eu ser uma coisa e o meu pensamento ser algo que habita em mim, como duas entidades que dialogam e se procuram entender pacificamente, sem tempestades.


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