outubro 29, 2021

O padre triste

O padre parece ter mais quinze anos do que os que tem. Veste um casaco maior do que ele, quer dizer, maior do que o tamanho certo para ele, com mangas que quase lhe tapam as mãos. Usa umas calças que enrugam ao longo das pernas, por serem maiores do que elas, polindo e quase tapando uns sapatos de solas gastas. São medidas desajustadas, mal compradas e nunca corrigidas. A barriga, grande, balofa e descaída, fazendo esticar a camisa desde o pescoço, parece que não lhe pertence. Na parte alta das costas tem uma ligeira corcunda que ameaça acentuar-se. Tem o cabelo quase todo branco, penteado na véspera. A pele do seu rosto é sebosa, própria de quem nunca fodeu ou não fode há muitos anos. Os cantos dos lábios têm espuma espessa, própria de quem fala muito e ou se medica. E fala alto, como sucede em geral com as pessoas carentes de afeto. Leva sempre consigo uma pasta, amolgada pelo tempo e pelo uso, condizendo com a sua imagem geral. O padre ora desce a avenida, do prédio onde mora para não sei onde, ora a sobe, de não sei onde para o prédio onde mora. Anda devagar, como que arrastando o peso dum corpo que não tem a força muscular nem o ânimo divino suficientes para andar normalmente. É solitário e triste, mas quando fala ri, só que o riso é triste também. Deus concede-nos o desejo e o prazer sexual, por isso pode-se dizer que este padre, como tantos outros, pratica a heresia de não ter sexo. Dum ponto de vista religioso é pecado ter prazer sexual mas, no mínimo, é tolice não usufruir de tal desígnio divino. O prazer e a alegria que Deus nos concede são condenados pela religião, por isso, o padre barrigudo e envelhecido é triste. Ele acredita no deus que a sua religião fabricou e o não deixa ser feliz, não no deus que se está nas tintas para as religiões e que, a existir, será esse o verdadeiro.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -

outubro 27, 2021

Pôr-do-sol


Ao pôr-do-sol as paisagens exercem um fascínio particular, sobretudo por ser o momento evidente da passagem do dia para a noite e pelo colorido particular que a atmosfera toma. Além disso, o lusco-fusco que se segue a esse momento contribui para um efeito tranquilizador geral. E quando nessa paisagem existe água e ou nuvens e ou planície a perder de vista e ou montanhas ao longe e ou casario com luzes acesas, ficamos como que enfeitiçados e em silêncio a olhar e a sentir.
Esta foto foi tirada em Alcácer do Sal.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -
- coisas por aí... -

outubro 24, 2021

420 dias?

Acrescentei o ponto de interrogação à previsão que está num placar da Rua Camilo Castelo Branco, em Setúbal, onde há vários meses decorre uma obra de substituição das canalizações de esgotos e de água, numa extensão de cerca de 250 metros. É uma obra necessária, não há dúvida, mas que ora impede ora limita a passagem de veículos e de pessoas, e que perturba a vida de quem ali mora ou trabalha, sobretudo no comércio. Estão previstos 420 dias para a sua execução, o que perfaz uma média de 60 cm por dia. Daí a minha interrogação. Soube, pela boca de quem lá trabalha, que frequentemente passam dias ou uma semana inteira sem que ninguém esteja naquela obra. Presumo que seja a mesma empresa que noutras partes da cidade está a fazer obras idênticas, procedendo da mesma maneira. Se assim for, está dada a resposta à minha pergunta.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -

outubro 20, 2021

Breve etimologia política

Anarquistas         fazem anais conquistas

Burocratas         são burros com metade das patas 

Capitalistas         capitulam as calistas

Comunistas         são comuns alienistas

Corporativistas têm corpos ativistas

Ditadores         ditam aos outros as suas dores

Fascistas         com asco fazem-se trocistas

Liberalistas         são livres e beras para fazer listas

Monárquicos         são monos hierárquicos 

Republicanos         regam o público com canos

Socialistas         são sócios dos cabalistas


Outros …anos são tiranos todos os dias, meses e anos

Outros …atas         vão às gatas e roubam-lhes as ratas

Outros …icos         fazem em fanicos pobres e ricos

Outros …istas são especialistas em eliminar antagonistas

Outros …ores         espalham maus odores com seus horrores


— E o que fazem os democratas?

— Jogam com o demo às cartas!


- do projeto Poemas com e sem penas -

outubro 17, 2021

Pensamento além de mim

Uso o pensamento como ferramenta para a procura de liberdade e de bem-estar, comigo e com os outros. Quero fazer do pensamento um espaço livre de influências perniciosas, mas tenho de ser muito cauteloso e atento, para que tais influências não se instalem aquando de alguma distração minha. Opiniões e ideias habilmente construídas, vindas do mundo à volta, muitas vezes carecendo de ética e de respeito, estão sempre à espreita duma oportunidade para se instalar e dominar, como faz um vírus num corpo onde entra. O meu pensamento é um templo de que sou guardião. Nele gosto de estar e de me movimentar, não quero ser prisioneiro dele. Gosto da imagem de eu ser uma coisa e o meu pensamento ser algo que habita em mim, como duas entidades que dialogam e se procuram entender pacificamente, sem tempestades.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas

outubro 13, 2021

A exposição continua


Continua patente ao público a minha exposição "Mudar de pele", em Santiago do Cacém, na Sala Multiusos da Fundação Caixa Agrícola Costa Azul. Até 16 de outubro. Os últimos dias de visita são as próximas 5.ª, 6.ª e sábado, das 14h às 18h?

atividades

outubro 11, 2021

Sobre "A superfície das coisas" - João Reis Ribeiro

Transcrevo, agradecendo, o texto escrito e lido por João Reis Ribeiro na apresentação (no dia 25 de setembro) do meu livro A superfície das coisas.

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É de Sophia de Mello Breyner uma interessante definição de poesia, constante num texto de homenagem a Jorge de Sena, datado de 1976: “A poesia não inventa outro mundo. Mas procura a verdadeira vida.” Longe da poesia está, pois, a ficção; bem pelo contrário, ao seu domínio pertence a demanda e a compreensão do essencial.

Ao intitular este livro como A superfície das coisas, António Galrinho pretende caminhar até ao mais profundo da vida e da sua complexidade, que residem, afinal, num olhar lento e pensado sobre a nossa circunstância, quase como se a “superfície” fosse a camada que precisa de ser retirada, ou aberta, para que as coisas sejam. E será debaixo dessa superfície que surge a vida na sua perfeição, a vida que é - ou não estivesse o poema dividido em sete partes e cada uma delas noutros sete segmentos, pormenor simbolicamente estruturante, totalizador e mágico, haja em vista toda a ligação que as mais diversas culturas têm ao número sete...

“Reflexão” se intitula o primeiro septenário, sendo a incursão inicial em torno da inevitabilidade e da presença da morte em todo o percurso da vida, que, mesmo assim, é qualificada como “preciosa”, adjectivo intenso na valoração, e como “única”, qualificativo prenhe de sentidos e de relativização. O que parece conferir este elevado estatuto à vida é o encontro com a alma, remetida para o sentir, para o amor, formas próximas de explicar um mundo de dúvidas, ainda que de maneira ilusória.

O segundo conjunto toma o título do livro, “A profundidade das coisas”, um caminhar até “misterioso interior”, amplo espaço de escuridão, com o poeta a tentar orientar-se pelos sentidos e a registar o seu “espanto” que não quer descrever, que não pretende definir, pois “palavras são compromissos” e “compromissos são prisões”.  Na verdade, este poeta acaba por não querer “escavar mais nas coisas”, preferindo “o suave respirar da superfície / ao pesado sufoco da profundidade”, pois não quer correr o risco de aniquilar a doçura dos sentidos, campo que domina a terceira parte, “Lamber amor”, um título todo ele sensorial, a cobrir as sensações experimentadas desde o nascimento, na relação estabelecida entre mãe e filho, passando pela descoberta e construção do amor, num trajecto animado pelas sensações, por ondas de erotismo, numa valorização trazida pelo jogo de palavras, em que se acentuam os “mistérios a descobrir”.

E entra o leitor na quarta parte, “Complexa inteligência”, conjunto de poemas dominados por olhar mais científico, percurso entre o “big-bang” e o ser humano em que sucedeu “tudo    muito    devagar”, aí se incluindo a criação das ilusões e a contradição maior que o ser humano criou, ignorando a demora, acelerando o mundo - “Eagoratudosepassatãodepressa / Tão difícil de parar”, distâncias graficamente assinaladas por maior separação entre as palavras quando se fala da vagareza da criação e pela sua junção quando se evoca a rapidez da vida.  

Pressente-se assim que as construções que têm a mão humana poderão não ser o melhor - e, por isso, o grupo “Sérias ideologias” se reveste de alguma disforia ao ironizar sobre as ideologias e as suas consequências, nefastas pelas tragédias provocadas em seu nome, quase interrogando sobre o papel que ao homem possa estar reservado...

Contudo, as duas últimas partes carregam alguma esperança, não porque constituam um programa alternativo, mas porque proporcionam a afirmação do poeta nas suas “Divagações” de independência e de se sentir alheio à máquina que trucida o tempo, assumindo um caminho próprio - “Fiz de mim uma construção / onde gosto de estar // Nela habito e nela sonho // Se essa construção deixar de me agradar / Erguerei outra”. É o poeta no seu paraíso, no seu jardim das delícias, jogando consigo próprio, aceitando-se e recusando-se, em permanente questionamento.

Todos estes passos são necessários para atingir o final em “Pacificadoras palavras”, surgindo nos sete poemas essa remissão do poeta para um mundo de mais silêncio, com palavras “sem som e sem forma”, que não prendam, buscando equilíbrio e paz. É nesta derradeira parte que o poeta se afirma, distanciando-se do banal e aproximando-se do mundo através do utensílio com que trabalha, a palavra - “Estou aberto para o mundo / Através dos meus sentidos / Ao mundo me conecto através deles / E das palavras que dele dizem // Ligar-me às palavras / E por elas ligar-me a tudo / Aí reside a grande magia”.

A superfície das coisas cumpre assim a sua peregrinação, permitindo a incursão no mistério, desconstruindo convenções e protegendo o essencial. Era necessário que este trajecto se cumprisse para a valorização da própria poesia e para a afirmação do poeta - é que, como registou Tolentino Mendonça, “a poesia não serve para distrair, nem ornamentar, mas para nos reconduzir em chave sapiencial ao coração da vida.” É aí que se encontra o paraíso!

João Reis Ribeiro
2021-09-25

- A superfície das coisas - Atividades -

outubro 08, 2021

O brilho que respira

Foram estas as ferramentas que serviram de inspiração para a crónica anterior. Tirei a foto há dias na oficina do poeta e amigo João Santiago, ou seja, talvez uns três ou quatro anos depois de ter escrito a crónica. Mas há por lá mais ferramentas, incluindo um compasso que terá mais de cem anos, tal como o martelo que se vê na imagem. Há também máquinas elétricas, que fazem girar os brilhos, e outras mecânicas, cujos brilhos se deslocam com manípulos ou pedais. O brilho é a prova de vida duma ferramenta, é a sua respiração. E essa respiração é também a da pessoa que a utiliza.

Coisas por aí...

outubro 07, 2021

Ferramentas brilhantes

Observava um sapateiro a martelar em solas. Toc toc toc, tac tac. Olhava para as marteladas certeiras e para o martelo com que as dava. Olhei também para um alicate que repousava na bancada de trabalho. Apreciava o brilho de uma e de outra ferramenta, aquele brilho que só as ferramentas com uso frequente têm. O homem parou e pousou o martelo. Eu peguei nele para o sentir. Reparei que, além de brilho e de lisura, o uso dá macieza e leveza ao ferro. São impressões que alteram a nossa perceção do objeto e do material de que é feito. Ao olhar a cabeça do martelo, espalmada e lustrosa de tanto uso, perguntei Se houvesse neste martelo um contador de marteladas, quantas estariam registadas? E respondi Milhões, certamente milhões. O velho sapateiro, de volta de uma bota, contou-me o quanto estima as ferramentas, pela função que têm mas sobretudo pelas memórias que guardam. Esse martelo foi utilizado por outro sapateiro, que já cá não está, que o passou para mim quando deixou o ofício. E julgo que já lhe tinha sido dado por outro. Depois acrescentou São muitas as vezes que penso em quem o utilizou. E assim mantenho viva a memória de cada um. As ferramentas sem uso, ferrugentas, são fantasmas de si mesmas; mas as que estão em uso mantêm o esplendor do trabalho que fizeram e de quem trabalhou com elas. As histórias que elas escondem.
(Na oficina do sapateiro e poeta João Santiago)

do projeto Anuário de banalidades

outubro 04, 2021

Uma sombra voadora

Parei num semáforo esperando, naturalmente, que o vermelho passasse para verde. Nesse meio minuto reparei na roupa pendurada num prédio. Gosto de ver roupa pendurada, em prédios, casas simples ou em quintais. Nalguns países proíbe-se pendurar roupa nos prédios, coisa que por cá começa a ir pelo mesmo caminho. Tontices do moderno mundo desumanizado… Entretanto, reparei que a sombra dum pano de loiça, meio enrolado à corda, se assemelhava a um pássaro que voava batendo as asas. Foi engraçado verificar que o pássaro batia as asas, ora mais devagar, ora mais rápido, mas sem nunca sair da parede onde estava.

do projeto Sincrónicas e anacrónicas