outubro 11, 2021

Sobre "A superfície das coisas" - João Reis Ribeiro

Transcrevo, agradecendo, o texto escrito e lido por João Reis Ribeiro na apresentação (no dia 25 de setembro) do meu livro A superfície das coisas.

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É de Sophia de Mello Breyner uma interessante definição de poesia, constante num texto de homenagem a Jorge de Sena, datado de 1976: “A poesia não inventa outro mundo. Mas procura a verdadeira vida.” Longe da poesia está, pois, a ficção; bem pelo contrário, ao seu domínio pertence a demanda e a compreensão do essencial.

Ao intitular este livro como A superfície das coisas, António Galrinho pretende caminhar até ao mais profundo da vida e da sua complexidade, que residem, afinal, num olhar lento e pensado sobre a nossa circunstância, quase como se a “superfície” fosse a camada que precisa de ser retirada, ou aberta, para que as coisas sejam. E será debaixo dessa superfície que surge a vida na sua perfeição, a vida que é - ou não estivesse o poema dividido em sete partes e cada uma delas noutros sete segmentos, pormenor simbolicamente estruturante, totalizador e mágico, haja em vista toda a ligação que as mais diversas culturas têm ao número sete...

“Reflexão” se intitula o primeiro septenário, sendo a incursão inicial em torno da inevitabilidade e da presença da morte em todo o percurso da vida, que, mesmo assim, é qualificada como “preciosa”, adjectivo intenso na valoração, e como “única”, qualificativo prenhe de sentidos e de relativização. O que parece conferir este elevado estatuto à vida é o encontro com a alma, remetida para o sentir, para o amor, formas próximas de explicar um mundo de dúvidas, ainda que de maneira ilusória.

O segundo conjunto toma o título do livro, “A profundidade das coisas”, um caminhar até “misterioso interior”, amplo espaço de escuridão, com o poeta a tentar orientar-se pelos sentidos e a registar o seu “espanto” que não quer descrever, que não pretende definir, pois “palavras são compromissos” e “compromissos são prisões”.  Na verdade, este poeta acaba por não querer “escavar mais nas coisas”, preferindo “o suave respirar da superfície / ao pesado sufoco da profundidade”, pois não quer correr o risco de aniquilar a doçura dos sentidos, campo que domina a terceira parte, “Lamber amor”, um título todo ele sensorial, a cobrir as sensações experimentadas desde o nascimento, na relação estabelecida entre mãe e filho, passando pela descoberta e construção do amor, num trajecto animado pelas sensações, por ondas de erotismo, numa valorização trazida pelo jogo de palavras, em que se acentuam os “mistérios a descobrir”.

E entra o leitor na quarta parte, “Complexa inteligência”, conjunto de poemas dominados por olhar mais científico, percurso entre o “big-bang” e o ser humano em que sucedeu “tudo    muito    devagar”, aí se incluindo a criação das ilusões e a contradição maior que o ser humano criou, ignorando a demora, acelerando o mundo - “Eagoratudosepassatãodepressa / Tão difícil de parar”, distâncias graficamente assinaladas por maior separação entre as palavras quando se fala da vagareza da criação e pela sua junção quando se evoca a rapidez da vida.  

Pressente-se assim que as construções que têm a mão humana poderão não ser o melhor - e, por isso, o grupo “Sérias ideologias” se reveste de alguma disforia ao ironizar sobre as ideologias e as suas consequências, nefastas pelas tragédias provocadas em seu nome, quase interrogando sobre o papel que ao homem possa estar reservado...

Contudo, as duas últimas partes carregam alguma esperança, não porque constituam um programa alternativo, mas porque proporcionam a afirmação do poeta nas suas “Divagações” de independência e de se sentir alheio à máquina que trucida o tempo, assumindo um caminho próprio - “Fiz de mim uma construção / onde gosto de estar // Nela habito e nela sonho // Se essa construção deixar de me agradar / Erguerei outra”. É o poeta no seu paraíso, no seu jardim das delícias, jogando consigo próprio, aceitando-se e recusando-se, em permanente questionamento.

Todos estes passos são necessários para atingir o final em “Pacificadoras palavras”, surgindo nos sete poemas essa remissão do poeta para um mundo de mais silêncio, com palavras “sem som e sem forma”, que não prendam, buscando equilíbrio e paz. É nesta derradeira parte que o poeta se afirma, distanciando-se do banal e aproximando-se do mundo através do utensílio com que trabalha, a palavra - “Estou aberto para o mundo / Através dos meus sentidos / Ao mundo me conecto através deles / E das palavras que dele dizem // Ligar-me às palavras / E por elas ligar-me a tudo / Aí reside a grande magia”.

A superfície das coisas cumpre assim a sua peregrinação, permitindo a incursão no mistério, desconstruindo convenções e protegendo o essencial. Era necessário que este trajecto se cumprisse para a valorização da própria poesia e para a afirmação do poeta - é que, como registou Tolentino Mendonça, “a poesia não serve para distrair, nem ornamentar, mas para nos reconduzir em chave sapiencial ao coração da vida.” É aí que se encontra o paraíso!

João Reis Ribeiro
2021-09-25

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