janeiro 29, 2022

Não te faças violento!

Quando era adolescente e o meu pai me via furioso, alterado ou simplesmente a barafustar, dizia-me Oh pá, não te faças violento!, e sorria. Quando muito, as minhas palavras ou reações mais acesas seriam excessivas, ou algo agressivas, mas não chegavam a ser violentas. Certamente a observação do meu pai teria um caráter preventivo, como se dissesse Vê lá, não passes desse nível para o da violência. Agradeço ao meu pai por ter posto, com palavras tão simples, água na fervura da minha adolescência difícil de aturar, até para mim. Agradeço também à minha mãe, cujo método consistia em fazer levantar mais fervura, até que a água entornasse e apagasse a fogueira. Fazia isso a ralhar ou a dar-me chapadas, às vezes vassouradas. Usaram métodos diferentes, complementares, mas ambos eficazes.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -

janeiro 27, 2022

Deixa-os falar!

O meu pai nunca entrava em discussões, nem nunca se chateava ou deixava incomodar quando apanhado no meio delas. Em conversas mais acaloradas, quanto mais os outros falavam, mais ele se reportava ao silêncio. Não por falta de lábia, mas por falta de interesse no registo de falar muito ou alto. Não contribuía para a confusão nem se metia nela. Ficava na dele, ouvindo (ou ignorando) o que se dizia, e às vezes soltava apenas um Deixa-os falar! Não chegava a ser desprezo o que ele sentia, simplesmente não tinha interesse no esgrimir de argumentos. Por isso, ficava sempre com a espada embainhada. 

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -

janeiro 25, 2022

O mê Atoine é que sabe!

Tó, Toi, Toni, Toino, Toine, Atoino, Atoine, Antoninho, Tonico e Toninho (nestes dois casos acentuando ou não a primeira sílaba) são variantes populares de António. Frequentemente, familiares e amigos de alguém que se chama António cedo se encarregam de rebatizar o bebé ou criança com uma ou mais dessas variantes. A mim coube-me Toino e Toninho (com a primeira sílaba acentuada), nomes que a minha mãe, a minha irmã, o meu irmão e outros familiares ainda me chamam. Mas o meu pai preferia Atoine. No decorrer de discussões ou de trocas de ideias, o meu pai, que estimava particularmente as minhas opiniões, de vez em quando dizia baixo O mê Atoine é que sabe! A frase não era para quem estivesse a participar na discussão nem para alguém em particular. Acho que a dizia para si mesmo, sabendo que certamente eu a iria ouvir.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -

janeiro 21, 2022

Dois dias de suspensão

Em geral, ao longo dos doze anos da escolaridade dos ensinos básico e secundário, fui um bom aluno, às vezes muito bom; nunca excelente mas sempre acima de mediano. Gostava da escola porque aprendia coisas e lidava com colegas, que eram amigos. Não gostava porque tinha de estar muito tempo sentado, e prefiria mexer-me; porque tinha de estudar mais do que me apetecia, e preferia brincar. Às vezes ia para a rua com falta disciplinar, quando era incorreto, claro. No 10. ano levei dois dias de suspensão juntamente com um colega, por termos partido umas vinte cadeiras duma sala. As mesas e as cadeiras eram velhas, de madeira desengonçada e rangente, com tampos de contraplacado fino, enfraquecido pelo uso e pela ação do tempo. Se nos sentássemos à bruta ouvia-se estalar um pouco. Era a velhice do material a queixar-se dos maus tratos. Quem desse um murro bem assente no meio do tampo abria-lhe um buraco. Quando soubemos que a escola aguardava a chegada de mobiliário novo para umas quantas salas, eu e o tal colega adotámos um método diferente: um pezão bem assente com o calcanhar do sapato. Acontece que a sala era a última dum longo corredor e, além disso, tinha a fechadura da porta avariada. Nos intervalos, quando não havia ninguém por perto, entrávamos na sala e cada um escolhia uma cadeira das em pior estado. Pegávamos num giz e fazíamos um círculo no meio do tampo para fazermos pontaria (como se fosse preciso!). Erguíamos o pé direito e zás!, ou melhor, crrr!, um buraco se abria com as farpas finas, bicudas e irregulares do contraplacado a apontar para baixo. A forma assemelhava-se a um tronco de cone invertido, em que as farpas eram geratrizes partidas e irregulares. A nomenclatura da Geometria Descritiva dominava-a eu bem, pois era a minha melhor disciplina, curiosamente, lecionada naquela sala. Investida após investida, ia aumentando o número de cadeiras com o fundo partido, ou escaqueirado, se lhe déssemos mais do que uma pezada. As que ficavam em pior estado eram colocadas em monte, a um canto da sala. Esse monte chegou a ser uma montanha quase até ao teto, com vinte e tal cadeiras empilhadas ao calhas. Essas cadeiras eram substituídas por outras igualmente velhas, porque as novas tardavam em chegar. Claro que se tentou descobrir quem fazia aquilo, mas só se soube quando duas colegas nos denunciaram, preocupadas que nos viéssemos a tornar marginais. Terão dito isso. Confessámos a autoria dos disparates, que fizemos por sabermos estar prevista a substituição das cadeiras. Talvez por isso, não tivemos de as pagar. E só nos foram aplicados dois dias de suspensão, por não termos antecedentes e sermos bons alunos. A minha mãe, coitada!, apanhou uma tristeza tão grande que só se lamentava com o sucedido. Nem forças teve para me castigar. Mas como não voltei a fazer nada que a desiludisse, com o passar do tempo recuperou o orgulho que tinha em mim.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -

janeiro 17, 2022

Bocage ao luar


A estátua de Bocage, que está na praça com o seu nome na cidade onde nasceu, Setúbal, foi inaugurada há 150 anos. Está imaculadamente limpa e excelentemente iluminada. Passei por lá há dias e tirei esta foto, com lua gibosa, entre o quarto crescente e a lua cheia.

- Coisas por ai... -

janeiro 16, 2022

Corações ao alto!

Confinavam as traseiras da casa dos meus pais com as duma família oriunda de Alcáçovas, sendo Valdemiro o nome do homem, polícia de profissão, mas que eu nunca vi fardado. O papel dele na instituição era concertar sapatos e servir no bar da polícia de Setúbal. Tinha três cágados no quintal, roubados (coitados!) às ribeiras do vale do Sado, que tratava por nome de gente. Peeeedro!, chamava um deles, prolongando a primeira sílaba num tom de quase cana rachada, e o animal aproximava-se, no seu possível passo lento, para receber pedaços de salsicha. A partir de certa altura, o vizinho Valdemiro estava quase sempre em estado de semiembriaguez, sempre pacífico e pachorrento, falando devagar e pausadamente, com os olhos turvos de humidade. Certa vez, ia eu no autocarro do centro da cidade para o bairro onde morávamos, entra ele umas paragens mais adiante. Cumprimenta o motorista e logo percorre o autocarro com os olhos, em busca de alguma cara conhecida, entre os poucos passageiros. Assim que depara comigo, nas filas do fundo, ergue os braços e diz, como se orientasse uma cerimónia religiosa, Tooooino!, corações ao alto! Os gestos, o olhar, a frase e o tom de voz em quase falsete com que a disse, deixaram-me ruborizado de vergonha, mais ainda quando os olhares de alguns passageiros se viraram para mim. Esta tornar-se-ia a recordação mais forte que guardo dele, agora com muito agrado. O vizinho polícia, como nas redondezas lhe chamavam, morreria de cirrose por volta dos 60 anos. Há pouco tempo contei esta história ao meu amigo José Luís. Por isso, quando lhe telefono ou apareço na sua casa, é frequente ouvi-lo dizer Toooino!, corações ao alto!

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -

janeiro 12, 2022

Sombra com máscara


Nesta foto da minha sombra deu-se a curiosa coincidência de uma pedra com formato de máscara ter ficado precisamente no sítio onde ela deve ser colocada. Não fiz por isso; só depois de ver a foto reparei no sucedido. Esta foi tirada no pavimento daquilo que resta do Castelo de Vinhais.

- Sombras de mim -


janeiro 09, 2022

Túnel de sobreiros


Uma muito agradável ecovia sai de Montemor-o-Novo pela antiga linha de comboio, para usofruto de pedestres e ciclistas. Um dos troços está assim, com um magnífico túnel de sobreiros. Noutros troços vê-se a cidade, as ruínas do castelo, animais a pastar e casas que pontuam a paisagem. Mas só por este túnel vale a pena lá ir.

Fotografia gentilmente cedida por Eduarda Gomes 
- Coisas por aí... - 

janeiro 03, 2022

Um sítio onde me sinto particularmente bem

Não tenho preferência por praias, por serras, vales ou planícies em particular. Posso gostar mais duns sítios e menos doutros, não por aquilo que são em termos geográficos ou paisagísticos, mas por me sentir particularmente bem lá. A cidade e o município de Montemor-o-Novo, com os seus campos e aldeias, estão entre os meus espaços preferidos. A cidade tem ruas e praças por onde gosto de passar, edifícios que gosto de ver e paisagens que gosto de olhar e sentir. Gosto de passar e de estar nas suas aldeias e lugares, das elevações e dos vales verdejantes, com oliveiras e sobreiros, árvores que me agradam particularmente. Em geral, os seus campos são saudáveis, onde a interação entre o homem e a natureza é bem sucedida, sem monoculturas abusivas e com lugar para animais selvagens e para gado. Gosto disso.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -