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fevereiro 03, 2024

Esmola

Raramente dou esmolas, porque raramente me parece serem sinceros os pedidos. Por outro lado, cruzo-me com gente que certamente precisaria de esmola mas que, por orgulho ou vergonha, não a pedem. E quando dou, às vezes arrependo-me. Hoje dei esmola a um velho que estava sentado num banco de jardim, a meio da principal avenida da minha cidade. À distância vi-o pedir a uma mulher, que lhe deu uma moeda. Eu aproximava-me dele e percebi que me iria pedir também. E assim aconteceu. Estendeu a mão e o olhar na minha direção e disse baixo algumas palavras que não entendi. Passei à sua frente, olhei-o de relance mas segui. A minha mulher disse Cheira tão mal a mijo! Eu não me apercebi, mas olhei para trás e parei. Então, vi melhor a figura daquele homem, que ainda olhava para mim, mas agora de mãos nos joelhos. A sua roupa estava sebenta e a sua pele suja e gordurosa. Tinha boina na cabeça e uma bengala ao seu lado. Peguei na carteira, tirei uma boa moeda, voltei para trás e coloquei-a na mão do homem. Ele agradeceu com uma lengalenga longa da qual só entendi algumas palavras. Não lhe senti mau cheiro, nem me arrependi de lhe ter dado a esmola.

- do projeto Anuário de banalidades -

setembro 03, 2023

Um cheiro doce

Fui ao cinema rever um filme que já tinha visto algumas vezes. Receei não conseguir chegar a tempo mas consegui, mesmo tendo de ir urinar antes de entrar. Aquilo que escolhi para esta banalidade não foi nenhuma surpresa com que tenha deparado. Pelo contrário, trata-se de algo com que deparo frequentemente, mas só hoje me deu para escrever acerca disso. Os urinóis cheiravam a rebuçado, daqueles como muito outros em centros comerciais e espaços públicos em geral, e não só. Há qualquer coisa que põem em cada urinol que emana um fortíssimo cheiro a rebuçado, que chega a ser mais incomodativo, e enjoativo, do que o da urina acumulada. Estranhamente, este cheiro é doce, ocorrendo-me a perversa e surreal ideia de que, um urinol novo, limpo a assim cheiroso se poderá até lamber. Uma porcaria de ideia!, mas é a que, sinceramente, me ocorre ante tal cheiro, mesmo sabendo para que é utilizado o objeto. O filme foi fantástico, mas mesmo assim não me fez esquecer a situação que deu origem a esta banalidade.

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julho 16, 2023

Sem-abrigo

Na sala de espetáculos, um espetáculo. Ouvia-se cá fora, perto das paredes mais próximas do palco. Sala cheia, talvez. Na parede lateral, do lado sul, uma saída de emergência num espaço ligeiramente recuado. Nesse espaço, cobertores e tralhas de alguém que ali faria intenção de pernoitar. Passei e olhei. Duas horas depois passei novamente, desta vez em sentido contrário. Lá estava agora o sem-abrigo, dando voltas entre cobertores e tralhas. Tentava abrigar-se na noite demasiado fria para um final de primavera. A reentrância daquela porta protegia-o do vento. Homem de meia-idade, alto, com cabelo comprido e loiro. Pareceu-me estrangeiro, talvez germânico ou nórdico. Reparei que entre aquilo com que se cobria havia uma bandeira nacional, muito suja. Sebenta de tantas nódoas.

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março 22, 2023

Às cavalitas do pai

Saídos do pequeno pedaço de praia que existe quase dentro da cidade, vinha um homem com o filho às cavalitas, certamente pai e filho. Homem alto, de calções e ténis e com uma pequena mochila às costas; rapazito pequeno, sentado nos ombros do pai, com um grande guarda-sol de braçado contra o peito. O pai ia de braços soltos, em marcha cuidadosa, para que o filho se aguentasse equilibrado; o filho ia sentido o balanço do corpo do pai, não se deixando atrapalhar com o grande guarda-sol de muitas cores. Parecia um treino para um número de circo, em que o homem testava a capacidade de equilíbrio da criança, e esta a sua capacidade de se equilibrar sem largar o que tinha nas mãos. Aproximavam-se do carro, ali estacionado, no momento em que me cruzei com eles. Não olhei para trás, pelo que não vi como desceu o filho dos ombros do pai.


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dezembro 11, 2022

Levantar cedo

Com frequência me levanto cedo ou muito cedo. Ou cedíssimo. Umas vezes porque quero, outras porque preciso, outras apenas porque acordo e o sono já não pega. Fruto de alguma agitação na cabeça e no corpo, por andar a trabalhar muito…, mas também por estar com quase duas dezenas de babas enormes, nos braços, peito e costas, devido às picadas de algum inseto que me têm causado um ardor incomodativo…, e hoje devido ainda ao barulho de chuva a sério mas fora de época. Resumindo, juntou-se muita coisa, quando apenas uma delas bastava para não me deixar dormir em condições e me fazer levantar cedo. Duma delas gostei, apesar da estranheza: a chuva! Quis vê-la. Abri as lamelas horizontais duma portada da janela e fiquei a olhar e a ouvir a chuva a cair, com pingos grossos. Que maravilha! Que paz! Mas, ao mesmo tempo, que preocupante! Entretanto, reparei que as janelas dianteiras do meu carro estavam com os vidros abertos uns dois dedos, como os havia deixado na véspera, devido ao calor. Entrava alguma água no carro, mas isso não foi nada preocupante.


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novembro 16, 2022

Curiosa coincidência

Acontecem-me coincidências curiosas com alguma frequência: pensar numa pessoa e cruzar-me com ela passado pouco tempo; trautear uma canção e logo a seguir ouvi-la na rádio; pensar ligar a alguém e ser essa pessoa a ligar-me; pensar falar de um tema e alguém falar dele antes de mim; etc. Hoje aconteceu-me uma coincidência interessante, diferente das que até aqui me aconteceram. Há alguns meses andava com vontade de comprar um livro pouco conhecido duma autora pouco divulgada. Tive de o encomendar, por ser daqueles que não costumam estar nas prateleiras das livrarias. Chegou há dias, uma semana e meia depois de feito o pedido. Tenho-o lido aos poucos, até porque ele é composto por pequenos textos, sem ligações entre si: contos e reflexões. Quando fui levantar o livro trouxe uma revista duma editora, onde são divulgados os livros que edita. Abri-a hoje e, para espanto meu, tem logo a abrir uma das reflexões da autora pouca divulgada, retirado precisamente do seu livro pouco conhecido, aquele que comprei e estou a ler.  

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outubro 02, 2022

Neve na Lua

Ao final da tarde, mas com a luz ainda bem forte, olhei para a Lua. Estava quase cheia, e havia pequenas nuvens brancas por perto. Reparei depois que o branco intenso das nuvens era idêntico ao da Lua. E ocorreu-me que nela teria nevado, ficando coberta por um manto branco, com algumas depressões ligeiramente acinzentadas. Era um cenário plausível se a lua fosse uma bola mais pequena e girasse dentro da atmosfera terrestre. Ela está bem longe, eu sei, longe do alcance do ar e da chuva. Mas perto da imaginação. Ou dentro dela, se quisermos, num território onde tanta coisa pode acontecer.

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agosto 30, 2022

Camaleão voador

Perto do pôr-do-sol andava junto do rio da minha cidade, porque me apetecia andar e porque me sabia bem apanhar ar fresco. Pus-me a pensar, então, qual seria a banalidade que iria registar neste dia. Claro que ainda faltavam algumas horas para o dia terminar e que muita coisa poderia acontecer. Pus-me a olhar para o rio, sempre tão azul, e para as nuvens, com cores e formas tão diferentes. Um arco-íris descontínuo passava dum lado para o outro do rio. Então reparei naquilo que daria origem à banalidade de hoje. Uma nuvem, mais branca do que as outras, com forma de camaleão de boca aberta, avançava lenta para poente. Curiosamente, estava a entrar na porção mais baixa do arco-íris, logo acima da estreita península do outro lado do rio. Achei piada à semelhança entre a nuvem e o bicho, apenas algo disforme do lado do rabo. Passados dois ou três minutos voltei a olhar, mas da nuvem restavam apenas uns farrapos dispersos e disformes; e também o pedaço de arco-íris havia desaparecido. Concluí que o camaleão voador havia comido as cores do arco, que o haviam feito desintegrar em farrapos de nuvem que, passados mais uns minutos, desapareceram por completo. Deve ser por comerem arco-íris que os camaleões adotam todas as cores. 

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março 09, 2022

Uma vista bonita

Fui a casa de um amigo, buscá-lo para irmos almoçar. Mora na parte mais alta da cidade, de onde se tem excelentes vistas sobre a cidade e arredores. Arredores são a larga foz do rio a sul, as planícies a nascente, montes a norte e serra a poente. Numa rua larga com uma descida acentuada pode observar-se, na sua parte mais alta, a sucessão da foz do rio e da estreita península que o separa do oceano. Foi aí que eu exclamei Esta vista é bonita, não é? O meu amigo acenou a cabeça, com o olhar fixo na paisagem que tínhamos à nossa frente. Mais palavras não foram necessárias, até porque poucos segundos depois, a paisagem desapareceu dos nossos olhos, como que engolida pelo casario de que nos aproximámos.

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dezembro 21, 2021

Um pombo a duas dimensões

É frequente ver pombos esmagados nas ruas da cidade. Depenicando aqui, depenicando ali, lá vão também depenicar no alcatrão. E quando a atenção é maior naquilo que depenicam do que naquilo que está à volta, às vezes acontece serem esmagados por um carro que passa. De facto é comum ver os pombos assim, espalmadas, mas nunca tinha visto nenhum a ser apanhado no instante em que tal sucede. Mas hoje vi, ou melhor, quase vi. Um carro que seguia à frente do meu apanhou um pombo que estava no alcatrão de uma rua, a dois passos do passeio. Vi o pombo ainda vivo, com outro ao lado, no passeio, e logo ouvi um som seco, tipo blorf, mistura de ossos quebrados e carne esborrachada. Não vi o momento do esmagamento porque o carro o tapou, mas logo vi o pombo reduzido a duas dimensões, já que o carro continuou o seu caminho. Em coisa de meio segundo, um pombo vivo ficou transformado numa bolacha de penas com recheio a nhanha de vísceras e sangue. O outro continuou, aparentemente indiferente, a depenicar no passeio.

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dezembro 08, 2021

As cores dos barcos

Já olhei muitas vezes para elas. Muitas, mesma. E hoje, ao passar junto da doca dos pescadores, mais uma vez olhei. São pequenas embarcações de pesca e botes de apoio, construídos em madeira, em moldes tradicionais. Não as contei, mas serão largas dezenas. Umas velhas e degradadas, outras novas ou bem cuidadas, outras assim-assim; umas em reparação, outras à beira da ruína; a maior parte dentro de água, algumas fora dela. O que mais me impressiona deste conjunto é ele aparentar uma obra de arte de dimensões enormes. As formas e as cores formam como que um quadro a três dimensões, à volta e dentro do qual se pode andar. As cores saturadas e contrastantes, são-no, mais ou menos, consoante a hora do dia e as condições atmosféricas. O conjunto é uma obra de arte, como uma instalação, que não foi pensada para o ser e que, por isso, é especialmente encantadora.

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outubro 07, 2021

Ferramentas brilhantes

Observava um sapateiro a martelar em solas. Toc toc toc, tac tac. Olhava para as marteladas certeiras e para o martelo com que as dava. Olhei também para um alicate que repousava na bancada de trabalho. Apreciava o brilho de uma e de outra ferramenta, aquele brilho que só as ferramentas com uso frequente têm. O homem parou e pousou o martelo. Eu peguei nele para o sentir. Reparei que, além de brilho e de lisura, o uso dá macieza e leveza ao ferro. São impressões que alteram a nossa perceção do objeto e do material de que é feito. Ao olhar a cabeça do martelo, espalmada e lustrosa de tanto uso, perguntei Se houvesse neste martelo um contador de marteladas, quantas estariam registadas? E respondi Milhões, certamente milhões. O velho sapateiro, de volta de uma bota, contou-me o quanto estima as ferramentas, pela função que têm mas sobretudo pelas memórias que guardam. Esse martelo foi utilizado por outro sapateiro, que já cá não está, que o passou para mim quando deixou o ofício. E julgo que já lhe tinha sido dado por outro. Depois acrescentou São muitas as vezes que penso em quem o utilizou. E assim mantenho viva a memória de cada um. As ferramentas sem uso, ferrugentas, são fantasmas de si mesmas; mas as que estão em uso mantêm o esplendor do trabalho que fizeram e de quem trabalhou com elas. As histórias que elas escondem.
(Na oficina do sapateiro e poeta João Santiago)

do projeto Anuário de banalidades

agosto 11, 2021

O som da cidade

A primeira coisa que faço quando me levanto é abrir a janela, ou melhor, a metade do lado direito e colocar na horizontal as lamelas da respetiva portada para entrar luz. Vejo a quinta aqui perto e ao longe o casario da cidade. Às vezes ponho-me a olhar um ou outro detalhe. Hoje pus-me a ouvir. E o que da minha casa se ouve melhor, sobretudo durante a noite e a madrugada, se não houver cães a ladrar, é um som surdo que a cidade e seus arredores emitem, uma espécie de ooommm… onde parece dominante o som dos veículos que circulam e das fábricas que trabalham. Mas como esse som não será só isso, mas uma mistura de todos os sons que na cidade e redondezas se produz, pus-me a imaginar que também há nessa mistura os sons emitidos pelas pessoas e objetos em que mexem. Nesse ooommm constante estão certamente também todas as conversas, todos os passos, bocejos, berros e beijos, sem que se consigam distinguir, sem que se consigam identificar.

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maio 29, 2021

Perfume de mulher

Estando numa pastelaria a tomar o pequeno almoço com um amigo, passou ao meu lado e pelas minhas costas uma mulher de uns 40 anos, que se foi sentar junto de um homem, sensivelmente da mesma idade, que pouco antes se instalara numa mesa atrás de mim. Mal vi o rosto da mulher, e a situação não mereceria esta banalidade, por ser demasiado trivial, não fosse o caso de o seu perfume ter semiparalisado o diálogo que estava a ter com o meu amigo, assim como o pensamento que me guiava. Sou sensível a cheiros, sim, e perfumes é coisa que por norma não aprecio e que até me causa algum enjoo. Estranhamente, este foi envolvente pela sua suave doçura, mas sobretudo por um toque bastante feminino que me fez sentir que seria emanado do próprio corpo da mulher. De tal modo feminino e envolvente, que dei por mim a pensar Caramba! Se fosse este o odor natural do corpo das mulheres…


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maio 20, 2021

Gritando pela mãe

Por volta das 20h, sendo já noite cerrada, um pequeno carro saía vagaroso, com duas pessoas, do estacionamento frente a um prédio. Não lhes percebi os rostos, porque estava escuro e porque não os procurei ver. Entretanto, do prédio saiu um rapaz duns treze anos com um saco na mão, que ele abanava, saco pequeno mas com algo dentro que lhe dava volume. Vendo que o carro já se afastava gritou Mãe!!, alto e num tom agudo, fazendo prolongar a palavra. Eu, apercebendo-me de alguma urgência naquele chamamento, logo a seguir gritei mais alto Oi!! Mas quem seguia no carro não ouviu nenhum de nós. Vendo algum ar de desalento no rapaz, que baixou os braços e sossegou o saco, sugeri Liga-lhe para o telemóvel. Ele demorou alguns segundos a reagir. Disse, olhando para o sítio onde ia o carro, A minha mãe vai agora para o hospital… Logo me virou costas e se dirigiu a passos lentos para a porta do prédio, cabisbaixo e abanando ligeiramente o saco.

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maio 17, 2021

Trââââââânsito

Fui à capital e um pouco além dela. Para lá apanhei pouco trânsito. Quer dizer, deu para andar sem parar, apesar do trânsito. Mas mesmo assim deu-me que pensar, pois mais alguns carros e a coisa complicava-se. Isto foi à ida para lá, ao início da tarde, pois à vinda para cá, ao final da tarde, já a coisa estava feia. Filas e filas; ou melhor, fiiiiiilas e fiiiiiiiiilas. E contive-me para não desperdiçar muitas letras repetidas. À vinda para cá o carro esteve mais tempo parado do que em andamento. Carros e carros, muitos carrrrrrrrrrrrrrrros; entre eles o meu a contribuir para o número. Dei por mim a pensar, algumas vezes, que não poderão estar bem da cabeça as pessoas que se confrontam diariamente com filas e esperas e os nervos daí resultantes. Como poderão estar bem as pessoas que são violentadas todos os dias pelo trânsito automóvel durante anos ou décadas? O que me incomodou estar em filas malucas de trânsito só por cerca de uma hora! Caramba!, pensar que fui só comprar umas tintas a uma loja.

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maio 10, 2021

Ver o mar

Fui ver o mar. Apeteceu-me. Não gosto de fazer praia mas gosto de ver o mar. Passei perto de três praias e parei junto de uma delas, onde era suposto haver muita gente, mas onde ninguém estava. Era fim de tarde, mas não era isso o que justificava a ausência de pessoas. Havia nuvens e algum vento, e parece que havia também qualquer coisa nas televisões, daquelas que transformam as pessoas em massa. O mar varrido pelo vento, o céu tapado pelas nuvens, a serra afagada pela humidade que por ela subia; eu por ali. Os pássaros voavam e cantavam como se houvesse sol; ou voavam e cantavam por não haver pessoas que os importunassem ou inibissem de cantar e voar à vontade. Pareceu-me estar noutro sítio que não aquele que tão bem conheço. Senti-me gente e não massa.

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abril 29, 2021

A pedinte sorridente

Há muitos anos que uma mulher muito velha se senta no peal da porta duma pequena casa antiga, que fica numa estreita rua das traseiras de dois importantes espaços comerciais da cidade. Normalmente de manhã, quando há mais azáfama de gente, já que um dos espaços comerciais está encerrado da parte da tarde. O que faz ela ali? Olha para quem passa e sorri para quem olha para ela. Mas outra coisa a leva ali: a esmola. Na realidade ela está ali a pedir, ou também para pedir, mas sem que estenda a mão ou exiba qualquer caixa ou moeda que revele isso. Às vezes vejo alguém dar-lhe uma moeda, que ela aceita sorrindo, sorrindo obviamente. Provavelmente precisa mais de ali estar a ver e a sorrir para quem passa do que dinheiro que lhe dão.

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abril 21, 2021

A vida no olhar

Cruzei-me com uma mulher, talvez com mais uns dez anos do que eu, de aspeto humilde. De relance olhei para os seus olhos, que também de relance fitaram os meus. A expressão do seu rosto era neutra, de uma aparente indiferença, mas nos dois segundos em que a olhei nos olhos pude ver tanta coisa neles! Dores, tristezas e cansaços, mas também alegrias. O seu olhar, onde tudo se concentrava, era um livro onde estava escrita toda a sua vida.

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