dezembro 21, 2021

Um pombo a duas dimensões

É frequente ver pombos esmagados nas ruas da cidade. Depenicando aqui, depenicando ali, lá vão também depenicar no alcatrão. E quando a atenção é maior naquilo que depenicam do que naquilo que está à volta, às vezes acontece serem esmagados por um carro que passa. De facto é comum ver os pombos assim, espalmadas, mas nunca tinha visto nenhum a ser apanhado no instante em que tal sucede. Mas hoje vi, ou melhor, quase vi. Um carro que seguia à frente do meu apanhou um pombo que estava no alcatrão de uma rua, a dois passos do passeio. Vi o pombo ainda vivo, com outro ao lado, no passeio, e logo ouvi um som seco, tipo blorf, mistura de ossos quebrados e carne esborrachada. Não vi o momento do esmagamento porque o carro o tapou, mas logo vi o pombo reduzido a duas dimensões, já que o carro continuou o seu caminho. Em coisa de meio segundo, um pombo vivo ficou transformado numa bolacha de penas com recheio a nhanha de vísceras e sangue. O outro continuou, aparentemente indiferente, a depenicar no passeio.

- do projeto Anuário de banalidades