abril 29, 2021

A pedinte sorridente

Há muitos anos que uma mulher muito velha se senta no peal da porta duma pequena casa antiga, que fica numa estreita rua das traseiras de dois importantes espaços comerciais da cidade. Normalmente de manhã, quando há mais azáfama de gente, já que um dos espaços comerciais está encerrado da parte da tarde. O que faz ela ali? Olha para quem passa e sorri para quem olha para ela. Mas outra coisa a leva ali: a esmola. Na realidade ela está ali a pedir, ou também para pedir, mas sem que estenda a mão ou exiba qualquer caixa ou moeda que revele isso. Às vezes vejo alguém dar-lhe uma moeda, que ela aceita sorrindo, sorrindo obviamente. Provavelmente precisa mais de ali estar a ver e a sorrir para quem passa do que dinheiro que lhe dão.

do projeto Anuário de banalidades

abril 27, 2021

Seminu com tecido


Seminu com tecido - acrílico sobre cartão, 100x70

- Nus e seminus -

abril 24, 2021

A melhor vista para o crime

Há muito tempo que desejava ir a São Leonardo da Galafura, de onde se tem uma das vistas mais deslumbrantes para o vale do Douro. Fizemos a estreita e sinuosa estrada da barragem do Pinhão até lá, passando por Covelinhas. Tem troços muito estreitos, vertiginosos e com curvas muito apertadas, subidas e descidas muito íngremes. Foi arrepiante, sobretudo quando nos cruzávamos com algum carro estando nós do lado do precipício. Chiça! Lá em cima, junto da capela dedicada ao santo da aldeia da Galafura, está um miradouro natural muito alto, de onde se tem uma vista de 360º para vales e serras a perder de vista. Em dois painéis de azulejos estão um poema e um pequeno texto em prosa de Miguel Torga, alusivos ao local. Mas o que têm aquelas encostas que em tempos estavam cobertas de vegetação autóctone? Vinhas, vinhas e vinhas! Mais de 90% dos terrenos que a vista alcança por dezenas de quilómetros estão cobertos de vinhas, desde as margens do rio até ao topo das montanhas. Raras nesgas da vegetação original subsistem, e tudo leva a crer que será por pouco tempo. Devia ter-se estabelecido cotas para as vinhas, para que não se tivesse chegado onde se chegou. Uma tristeza! Não consegui gostar do que vi, pois o que dali se vê é a vista mais ampla para o enorme crime ambiental que são as vinhas do Alto Douro Vinhateiro. Um crime ambiental classificado como património da humanidade pela UNESCO. E milhões de pessoas bebem vinho dali, de videiras carregadinhas de herbicidas, pesticidas e adubos artificiais. Algumas placas na estrada, junto a áreas minúsculas de mato, indicam zona de caça. Ou seja, naquelas nesgas que são o pouquíssimo que sobra dos seus imensos territórios, alguns dos animais que ali se refugiam ainda são alvo de caça. Este é mais um capítulo do crime que são os desequilíbrios ambientais que por ali acontecem. 

do projeto Entre deuses e diabos

abril 21, 2021

A vida no olhar

Cruzei-me com uma mulher, talvez com mais uns dez anos do que eu, de aspeto humilde. De relance olhei para os seus olhos, que também de relance fitaram os meus. A expressão do seu rosto era neutra, de uma aparente indiferença, mas nos dois segundos em que a olhei nos olhos pude ver tanta coisa neles! Dores, tristezas e cansaços, mas também alegrias. O seu olhar, onde tudo se concentrava, era um livro onde estava escrita toda a sua vida.

do projeto Anuário de banalidades

abril 14, 2021

Transparências


Transparências - acrílico sobre tecido, medida menor: c.155

da série Silhuetas

Medrosos ditadores

Os ditadores são as pessoas mais medrosas do mundo. Têm tanto medo que precisam ter o exército e a polícia do seu lado, a protegê-los. Nas aparições públicas estão rodeados de guarda-costas e polícias armados. E são tão fracos que precisam duma ideologia para os suportar. O seu medo e as suas fraquezas levam-nos a amedrontar os outros. São fracos e medrosos. Quem é forte não precisa disso.


do projeto Entre deuses e diabos

O sentido da vida

A vida não traz sentido com ela, por isso não se o procure. Sentido é coisa humana, não é coisa da natureza. Mas se alguém quiser, e puder, dê sentido à sua vida. E isso já será muito.


do projeto Entre deuses e diabos

abril 12, 2021

Cristo quadrificado


Cristo quadrificado - acrílico sobre tela, 200x200
(a partir duma obra de Matthias Grunewald)

 da série Cristos

Subsiste a palavra

Impérios sucedem-se a outros impérios, países a países, culturas a culturas, religiões a religiões. Das ruínas de uns se erguem outros. A História segue entre ser lembrada, esquecida ou manipulada. Se a História não vingar, resta a lenda ou a memória. E quando já mais nada houver, subsiste a palavra. A palavra é a herança última da humanidade.

do projeto Entre deuses e diabos

abril 09, 2021

Anacíclico de orar

 

social somos laicos

missa supus assim 

orava o avaro 

oras e saro 

orar e raro
se oro es
em ses me 

orem mero 

mes sem
mim
salta atlas 

sacram sas marcas


do projeto Mínimos e visuais

abril 08, 2021

Rapariga grávida com mão na barriga

Rapariga grávida com mão na barriga - acrílico sobre cartão, 100x70

- Nus e seminus -

abril 07, 2021

O contrário do óbvio

Às vezes ocorrem-me raciocínios muito simples de onde nascem conclusões que me parecem muito certeiras. Tão simples e elementares (descomplicadas, que é uma palavra que por aí muito se diz e com que simpatizo) que me surpreendem mais do que muitos raciocínios complexos dos quais pouco sumo pinga. Vejamos… Quem mais fala de liberdade e democracia não as pratica nem as deseja, e defende regimes onde elas não existem; quem muito fala de amor e paixão duvido que tenha as melhores intenções, e num momento de desequilíbrio logo chispará ódio; quem não se cala com a justiça é, no fundo, capaz das maiores injustiças; quem mais fala de combate à corrupção é quem mais contribui para a camuflar ou fazer proliferar; quem muito fala em trabalho está sempre à espreita duma oportunidade para não trabalhar, ou para que outros trabalhem por ele; quem muito fala de paz e de harmonia entre os povos fá-lo para desviar a atenção de guerras que, na realidade, defende e promove. A isso chamo o contrário do óbvio, por me ser tão óbvio que, por um qualquer mecanismo de compensação, se vozeie aos sete ventos precisamente o contrário daquilo que se defende. Quem a sério defende os bons valores tem isso como tão natural e enraizado que não precisa de os espalhar aos sete ventos. Porque os pratica, e pronto.


do projeto Entre deuses e diabos

Triângulo e triangular


T


R         I


A                  N


G       U        L       O





T


R         I


A         N        G

 

U        L        A        R




do projeto Mínimos e visuais

O homem do acordeão


O homem do acordeão - Acrílico sobre cartão, 100x70

da série Surpreendidos

abril 06, 2021

Tóxicas dependências

Qualquer ideologia

Política ou religiosa

É uma droga perigosa


Em grandes quantidades

Gera comportamentos

Muitas vezes violentos


Levada muito a sério

Conduz à dependência

E a sonora flatulência


do projeto Poemas com e sem penas

Nu com máscara



Nu com máscara - Acrílico sobre cartão, 70x100

- Nus e seminus -

abril 03, 2021

Nu com máscara

 

Nu com máscara - Acrílico sobre cartão, 100x70

- Nus e seminus -

abril 01, 2021

Preto e negro

Para ser politicamente correto, o título desta crónica deveria ser Preto ou negro, mas não, é assim mesmo: Preto e negro. Bem mais do que politicamente correto, prefiro ser honesto. Surgem agora facilmente ondas de racismo, bastando para isso uma palavra suscetível de ser mal interpretada e que, assim, gere conflito. Ou, pelo menos, controvérsia. Depois, os distúrbios da cabeça de cada um (por vezes marcados por passados dolorosos ou humilhantes, é certo) fazem o resto. E o resto chega facilmente à ofensa, ao ódio e à violência. Basta usar a palavra preto em vez de negro, por exemplo, mesmo por distração, mesmo sem intenção de ofender. Eu uso ambas, indiferentemente, pois para mim são sinónimos. Sai-me aquela que sair, sem que lhe associe qualquer juízo de valor. Amigos, colegas, vizinhos, conhecidos, desconhecidos e alunos que tenham a pele escura, para mim são pessoas. Se tiver de falar deles poderei referir-me à cor da pele, sim, dizendo que é preto ou negro, ou escuro. E não estarei a ofender porque pela minha cabeça não passa ofensa. Os de pele escura que me conhecessem sabem que assim é, porque também usam entre si os mesmos adjetivos, e alguns até brincando com isso. Também eu sou branco ou claro, ou cor-de-rosa, ou lixívia, ou cal. Feio e ofensivo será do adjetivo fazer substantivo. Dizer O Manuel é preto é diferente de dizer O preto é Manuel. Dizer que uma pessoa é negra é diferente de dizer que o negro (se calhar) é pessoa. Para evitar conflitos e mal-entendidos basta usar as palavras corretamente, com decência, com justeza. Mas para isso é preciso que estejam de acordo com o que se passa dentro da cabeça, esperando que também ela seja decente e justa.

do projeto Sincrónicas e anacrónicas

Aqui está!

Costumo dizer que ando na vida sem pressa, o que justifica muitas das minhas opções talvez tardias. Mas é assim que eu funciono. Parece tratar-se de inércia, ócio ou preguiça, mas é apenas um logo se vê, que nalgumas coisas chegou a durar anos, ou décadas. Depois duma aventura de alguns anos com um blogue, que há mais anos ainda se encontra moribundo e quase vazio, por opção e desinteresse, e depois da criação dum saite que nunca chegou a estar acessível ao público, neste caso por dificuldade própria em o gerir, finalmente surge este espaço para divulgar a minha obra e as minhas atividades. É verdade, embora pareça mentira, estar a dar-lhe início no dia 1 de abril, sendo tal data pura casualidade. Depois de muita insistência do meu amigo Paulo Cavaco, que me guiou na sua construção, aqui está o blogue, com as dificuldades próprias de quem não é especialista nestas coisas, mas também com a virtude de estar a ser feito com gosto e com calma. A minha opção nunca passaria pelas chamadas redes sociais, onde não me meto pelo ruído visual e psicológico que provocam, preferindo um espaço tranquilo e minimalista, ainda que venha a ser visitado por muito menos gente do que sucederia por outras bandas.

O corpo principal do blogue apresenta-se em duas colunas: na mais larga, do lado esquerdo, vão surgindo regularmente pequenos textos e imagens, da minha autoria e de outros; na mais estreita, do lado direito, está uma brevíssima apresentação minha, as atividades que vou desenvolvendo, os livros que estão editados, informações técnicas do próprio blogue, entre outras. O menu do blogue tem separadores dedicados à pintura e à escrita: em "Tela", "Cartão" e "Tecido" estão reproduções de quadros feitos sobre esses suportes, "Seleção" mostra um conjunto de trabalhos desses suportes, em "Ateliê" há fotos do espaço e de trabalhos em execução, em "Catálogos" há catálogos das principais exposições individuais; em "Prosa" e "Poesia" estão excertos de livros editados desses géneros, assim como de projetos de livros não editados, "Entrevistas" tem entrevistas a escritores que conheço, "Diversos" apresenta estudos e crónicas onde se associa textos e imagens, mas não só.

do projeto Sincrónicas e anacrónicas