outubro 29, 2022

Antes do suicídio

        Primeiro subiu por uma escada que só descia. Depois por uma que não subia nem descia. Na terceira escada tropeçou no segundo patamar do primeiro degrau. A quarta escada tinha um patamar a menos e dois degraus a mais. Depois entrou e saiu por um labirinto sem entrada nem saída nem labirinto. Fechou a porta já fechada. Subiu ainda três escadas que eram um só degrau. Deitou-se na cama já deitada. Bebeu duas vezes a garrafa já bebida outras tantas. Abriu outra garrafa já aberta e, numa dança louca, banhou a cama de vinho. Tentou dormir para esquecer a posterioridade das paredes falsas.
— Que grande vida! Que grande merda de vida!
Foi-lhe impossível dormir. Levantou-se durante a noite. Meteu a estante no bolso das calças, a secretária debaixo da cama, a jarra com flores secas no bolso do colete, a mesa-de-cabeceira debaixo da cabeceira e pendurou a cadeira no cabide.
Saiu antes de a noite ir embora. Saiu dificilmente, pois esquecera-se para que lado abria a porta… Na escada foi mais fácil: era a descer. As ruas vaguearam por ele. O sol ainda não rompera as densas nuvens. Atravessou a cidade numa agonia dura. Chegou ao alto castelo com os seus passos improvisados. 
Subiu a mais alta torre e, cheirando o dia que se adivinhava, lançou-se de braços abertos lá para baixo, onde as casas são pequenas e por isso não cabem lá os homens. Mas uma força puxou o seu corpo para cima e encaminhou-o para um bando de aves que tinha uma rota em riste. Alinhou no seu alinhamento. 
Então, caiu-lhe a estante do bolso das calças e a jarra com flores do bolso do colete. Caíram-lhe também as calças e o colete e tudo o mais que não fosse pureza. Nessa altura o sol rompeu as nuvens. Mas os seus raios não chegaram à cidade; iluminaram apenas toda aquela metamorfose. 
Ele foi e não quis mais voltar.
Não é que eu ande sempre com este meu amigo para poder contar isto; eu já o conheço é muito bem e sei que ele faz isto todos os dias.

(Conto escrito aos 16 anos)

- do livro Escritos de juventude

outubro 26, 2022

A guerra - José Jorge Letria e André Letria

 

A guerra é um livro com texto de José Jorge Letria e ilustrações de André Letria (pai e filho). O texto consiste em cerca de duas dezenas de frases que começam todas com a "A guerra..."; as ilustrações, em tons de branco, cinza e preto jogam com as frases, e vice-versa. Foi também feito um vídeo onde se vê o ilustrador a desenhar e se ouve o escritor a dizer as frases. Umas delas, que não está no livro mas surge no vídeo é "A guerra é sempre feia". O livro foi editado em 2018 pela editora Pato Lógico.

- Livros -

outubro 23, 2022

Nuvens bonitas

Sempre me encantou ver nuvens. Brancas, cinzentas, negras, alaranjadas; pequenas, grandes, plenas de tufos, de aparência plana, etc. Tão diferentes as podemos encontrar. Já escrevi acerca da diversidade e da beleza peculiar das nuvens da Península da Arrábida (sei que o nome oficial é Península de Setúbal, mas já muita gente prefere o outro, que acho que vai acabar por vingar). As largas embocaduras do Tejo e do Sado, a norte e a sul, o atlântico e a planície, a poente e a nascente, assim como a presença da Arrábida tão junto ao mar, conferem a esta região caraterísticas geográficas, climáticas e atmosféricas únicas. E isso faz-se sentir nas formas, densidades, dimensões e cores das nuvens dum modo peculiar (pelo menos assim me parece). Ora surgem pequenas e esfarrapadas, longas e suaves ou densas e tenebrosas. E, claro, as suas formas, aqui como em qualquer lugar, são também muito sugestivas. De tempos a tempos, não me apercebi em que circunstâncias específicas, forma-se uma nuvem única, gigantesca e densa, algo assustadora e de um cinzento acastanhado. É uma nuvem baixa, que avança lentamente do lado do oceano, apresentando uma frente retilínea, com orientação norte-sul, e que lembra um pano de muralha. Chega a estar metade do céu da península debaixo dessa nuvem e a outra metade limpa, ou quase. Ao avançar vai perdendo densidade e, por norma, pouco mais acontece do que uma chuva ligeira. Tem piada o contraste entre a aparência tenebrosa dessa nuvem e os seus efeitos pacíficos.

- Do projeto Entre deuses e diabos -

outubro 17, 2022

Mudar os nomes

 

Isto de mudar os nomes das ruas, avenidas e praças tem que se lhe diga. Originalmente, nas zonas antigas das nossas cidades, vilas e aldeias, o nome é dado por um motivo que tem que ver diretamente com o local e a sua história. Mudá-lo por qualquer vaidade ou vingança, porque os calores de momentos assim ditam ou por qualquer outro motivo, pode dar em coisas ridículas como esta, em Coruche, onde a placa indica, além do nome atual da praça, outros dois que ela já teve. Não sei... mas, às tantas, talvez suceda ali o que sucede em tantos sítios, que é as pessoas continuarem a utilizar o nome original. Por exemplo, em Lisboa, quem chamará Praça D, Pedro IV ao Rossio?

- coisas por aí... -

outubro 09, 2022


Dentro de cada homem existem várias pessoas II - Acrílico sobre tela, 140 x 140

 - da série Quadrados e quadriculados -

outubro 02, 2022

Neve na Lua

Ao final da tarde, mas com a luz ainda bem forte, olhei para a Lua. Estava quase cheia, e havia pequenas nuvens brancas por perto. Reparei depois que o branco intenso das nuvens era idêntico ao da Lua. E ocorreu-me que nela teria nevado, ficando coberta por um manto branco, com algumas depressões ligeiramente acinzentadas. Era um cenário plausível se a lua fosse uma bola mais pequena e girasse dentro da atmosfera terrestre. Ela está bem longe, eu sei, longe do alcance do ar e da chuva. Mas perto da imaginação. Ou dentro dela, se quisermos, num território onde tanta coisa pode acontecer.

- do projeto Anuário de banalidades -