novembro 29, 2021

O ninho de vespas

Ao passar ao lado da quinta do Jaquelino, cumprimentei-o como habitualmente, com um grito qualquer, para que ele, a meio da encosta onde costuma estar, saiba que vou a passar e possa fazer conversa comigo, coisa que gosta de fazer. Olhe, já viu o que ali está? Eu olhei e vi uma coisa enorme com a forma duma pera, e seca por ser castanha, pendurada no alto dum grande choupo. O que é?, perguntei. É um ninho de vespa-asiática. Sei que elas andam por aí, já vi algumas e sei também os danos que podem causar, mas não fazia ideia de os seus ninhos poderem chegar àquelas dimensões. Tem cerca de 90cm de altura por 70 de largura. Deve ter umas duas mil vespas lá dentro. Depois contou-me detalhes do comportamento delas e do quão perigosas são. O ninho deve estar aí há muito tempo, mas só agora que o choupo começou a perder a folha é que dei por ele. Olhei atentamente e, mesmo a uns 30m de distância, consegui ver umas quantas vespas a andar na superfície do ninho, em torno dumas quantas entradas. Já avisou as autoridades?, perguntei, pois sei que é obrigatório avisar. Já! Ficaram de cá vir amanhã ou depois. Mas não sei como conseguirão destruí-lo. Pois eu também não, já que a árvore é muito alta e situa-se na junção de duas íngremes colinas, junto das quais passa um ribeiro cujas margens estão cobertas de canas e mato denso. Está ali um bico de obra.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -

novembro 24, 2021

Ida a Santarém

Dois dias depois do 64.º aniversário do meu irmão, fui visitá-lo à sua nova casa em Santarém. Mudou-se de Setúbal para lá há dois meses, para uma casa de piso térreo, perto do antigo hospital, antiga misericórdia, onde nós nascemos. A casa é muito agradável, depois de remodelada pelo seu bom gosto. Os seus quatro gatos, três deles sem pelo, fizeram companhia às sete pessoas presentes, só uma delas sem pelo (eu). Depois fomos dar uma volta pela parte velha da cidade. O meu irmão foi-nos contando onde estudou aos onze-doze anos, numa escola que tinha umas salas nuns edifícios e outras noutros, em ruas diferentes. No caminho para as Portas do Sol falou-nos e mostrou-nos algo que a todos surpreendeu, e a mim até emocionou. Eu tinha uma vaga ideia de já ter ouvido a história, mas pareceu-me estar a ouvi-la pela primeira vez. Contou-nos que quando não tinha aulas ia até esse jardim com miradouro para o Tejo para espreitar para longe através dum monóculo que funcionava com uma moeda. Acontece que pelo caminho ele ia desgastando o rebordo duma moeda de baixo valor pelas paredes das casas, até que ela ficasse com as dimensões duma de maior valor, aquela com que o monóculo funcionava. Ora, o mais curioso de tudo isto foi que ele nos mostrou os sulcos feitos pelas moedas, nas paredes de várias casas, ao longo da rua. Mais de 50 anos depois, em casas que pouca pintura viram desde aí, ainda lá estão alguns com vários metros, feitos à altura da cintura. 

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -

novembro 22, 2021

Aranha no espelho


Permitimos que muitos dos bichitos que andam por casa cá continuem. Alguns menos desejáveis são postos no quintal, onde ficam num habitate que lhes é mais favorável. Só matamos os que forem altamente indesejáveis e potencialmente perigosos. Esta aranha anda por cá há algum tempo. Tenho-a visto em diferentes sítios da sala, hoje deparei com ela no espelho da casa-de-banho. À primeira vista parece irreal, aparentando ser o símbolo duma marca de roupa, mas é real e está no espelho. Tem umas pernas finas e é castanha, mas a luz artificial e a desfocagem engrossaram-na e deram-lhe um tom dourado.

- Reflexos de mim -

novembro 20, 2021

A profundidade das coisas - partes I e II

I


Dei por mim tentado pela profundidade das coisas

Por me terem convencido da sua existência


Passei anos buscando a profundidade das coisas

Na solidez aparente da realidade do mundo


Na ilusória sabedoria dos livros dos sábios

Na beleza e em tudo o que nas artes pode haver


Até no misterioso interior de mim

Me convenci haver o que escavar


Mas de tão fundo penetrar encontrei escuridão

Como acontece quando se desce a um poço fundo


II


Não vou descer ao poço fundo

Se à superfície vejo melhor


Não vou meter-me gruta adentro

Se cá fora tenho luz


Não vou procurar a luz ao fundo do túnel

Se a tenho antes de nele entrar


Quanto mais entro na profundidade das coisas 

Mais se me penumbra a vista


Avançar na profundidade das coisas

É provocar cataratas nos próprios olhos


- do livro A superfície das coisas -

novembro 17, 2021

Ondas de vento


Ondas de vento - acrílico sobre tecido, lado menor: c.155cm

- da série Silhuetas

novembro 14, 2021

Falta de tempo

Utilizar o argumento da falta de tempo para justificar algo que não se faz ou se adia (como a visita a um familiar ou amigo) chega a roçar a hipocrisia. Todos os dias têm 24 horas, cada hora tem 60 minutos e cada minuto tem 60 segundos, e todos do mesmo tamanho. Ou seja, toda a gente tem o mesmo tempo. O problema não está, pois, em não se ter tempo mas naquilo que cada um faz com ele. Quando alguém diz Não tenho tempo. deveria antes dizer Não faço essa coisa porque estou a fazer outra. Por norma, uma pessoa faz uma coisa e não outra porque assim escolhe, e não porque não possa. Mas esconde-se atrás do tempo.

- do projeto Entre deuses e diabos

novembro 10, 2021

A Sagrada Família - Miguel Ângelo


Este é o único quadro sobre suporte móvel que Miguel Ângelo terminou. Os elementos da Sagrada Família dispõem-se num volume escultórico mas dinâmico que, apesar de forçado e teatral, surpreende e resulta em termos plásticos. Nessa artificialidade, contudo, o olhar e os gestos que a Virgem Maria dirige ao Menino Jesus são duma enorme ternura e delicadeza. As cores e as suaves gradações de luz conferem uma enorme harmonia a este quadro.

- os meus quadros preferidos - 

novembro 07, 2021

Contra ou a favor?

Contra ou a favor? O meu cérebro é complexo e exigente. Não funciona com tão pouco. 

- Frases soltas -

novembro 04, 2021

Arte com conchas - Alcáçovas


O Jardim das Conchas, em Alcáçovas, corresponde ao antigo pátio do Paço dos Henriques, ou melhor, a menos de metade daquilo que em tempos foi esse pátio. Depois de décadas sem entradas controladas e sujeito a pilhagem, o jardim foi restaurado e tem agora ruínas bem conservadas daquilo que já teve outro esplendor. Contudo, a capela e a sacristia, pequenos espaços que comungam dum mesmo edifício, foram resguardados e, por isso, apresentam ainda grande parte do seu esplendor original. Esta fotografia mostra uma parede exterior e o seu reflexo num tanque. A intrincada composição, feita com conchas, pedrinhas e cacos cerâmicos, impressiona e encanta. Mas mais impressionam e encantam as composições que decoram as paredes e os tetos da capela e da sacristia. Embora haja mais coisas encantadoras nesta vila rica em história e em tradição, vale a pena lá ir só para as ver.

- outras artes -

novembro 01, 2021

Palavras aniversariantes

Faz hoje 46 anos que decidi que seria escritor. Um ou dois anos antes já havia decidido que seria pintor. Precocemente me encantei pelas tintas e pelas palavras, e delas fiz paixões que, com dificuldade, mantive em paralelo com a profissão de professor. Nunca esteve em causa abandonar uma em favor da outra, pois as paixões não tiram espaço à vida, pelo contrário, acrescentam. Contudo, só há sete anos fiz delas ocupação principal, após deixar a profissão que, essa sim, tirava espaço e qualidade à minha vida. Tinha 11 anos e foi nesta data que comecei a escrever o meu primeiro livro, que intitulei Um velho com um espírito novo. Lembro-me de ter pensado que desse dia em diante iria escrever porque gostava e porque tinha ideias para isso, fosse em prosa ou em poesia. Por isso, 1 de novembro de 1975 marca o meu nascimento como escritor. Embora tivesse decidido antes que seria pintor, na realidade, aquilo que posso designar como o meu primeiro quadro só foi pintado aos 19 anos. Antes disso, a paixão pela pintura não se manifestava ainda a pintar.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -