fevereiro 22, 2024

Tenho um gato

Tenho um gato cuja maior mestria é dormir, como sucede com qualquer gato. Olha para mim quase sempre que olho para ele. Às vezes pergunta-me Então, o que se passa contigo? Incomoda-me o seu olhar e as suas perguntas. Nem sempre lhe respondo e chego até a virar-lhe as costas, mas fico a pensar nele. Os gatos passam dois terços da vida a dormir, e em dois terços do tempo que passam acordados estão silenciosos, parados e de olhos semicerrados, sentindo a verdade como ela é: agora e sem porquês. Quando me sento no sofá, vai para o meu colo e olha-me duas ou três vezes com um ar ensonado, dizendo Vou mostrar-te como se dorme. Dá meia-volta, enrosca-se num abraço fraterno ao sono, olha-me uma última vez para confirmar que ainda estou a olhar para ele, e pronto. Depois fico a sentir-lhe o ronrom e a fazer-lhe festas suaves e lentas. Tranquiliza-me, dá-me sono…, mas não durmo.

- parágrafo do Monólogo das insónias -

fevereiro 10, 2024

Um pequeno cogumelo

Um pequeno e colorido cogumelo nasceu sobre um pedaço de sobreiro morto, com um palmo de comprimento. É a natureza a cumprir a sua função de renovar a vida. Não é preciso dizer mais.

- coisas por aí... -

fevereiro 03, 2024

Esmola

Raramente dou esmolas, porque raramente me parece serem sinceros os pedidos. Por outro lado, cruzo-me com gente que certamente precisaria de esmola mas que, por orgulho ou vergonha, não a pedem. E quando dou, às vezes arrependo-me. Hoje dei esmola a um velho que estava sentado num banco de jardim, a meio da principal avenida da minha cidade. À distância vi-o pedir a uma mulher, que lhe deu uma moeda. Eu aproximava-me dele e percebi que me iria pedir também. E assim aconteceu. Estendeu a mão e o olhar na minha direção e disse baixo algumas palavras que não entendi. Passei à sua frente, olhei-o de relance mas segui. A minha mulher disse Cheira tão mal a mijo! Eu não me apercebi, mas olhei para trás e parei. Então, vi melhor a figura daquele homem, que ainda olhava para mim, mas agora de mãos nos joelhos. A sua roupa estava sebenta e a sua pele suja e gordurosa. Tinha boina na cabeça e uma bengala ao seu lado. Peguei na carteira, tirei uma boa moeda, voltei para trás e coloquei-a na mão do homem. Ele agradeceu com uma lengalenga longa da qual só entendi algumas palavras. Não lhe senti mau cheiro, nem me arrependi de lhe ter dado a esmola.

- do projeto Anuário de banalidades -