janeiro 21, 2022

Dois dias de suspensão

Em geral, ao longo dos doze anos da escolaridade dos ensinos básico e secundário, fui um bom aluno, às vezes muito bom; nunca excelente mas sempre acima de mediano. Gostava da escola porque aprendia coisas e lidava com colegas, que eram amigos. Não gostava porque tinha de estar muito tempo sentado, e prefiria mexer-me; porque tinha de estudar mais do que me apetecia, e preferia brincar. Às vezes ia para a rua com falta disciplinar, quando era incorreto, claro. No 10. ano levei dois dias de suspensão juntamente com um colega, por termos partido umas vinte cadeiras duma sala. As mesas e as cadeiras eram velhas, de madeira desengonçada e rangente, com tampos de contraplacado fino, enfraquecido pelo uso e pela ação do tempo. Se nos sentássemos à bruta ouvia-se estalar um pouco. Era a velhice do material a queixar-se dos maus tratos. Quem desse um murro bem assente no meio do tampo abria-lhe um buraco. Quando soubemos que a escola aguardava a chegada de mobiliário novo para umas quantas salas, eu e o tal colega adotámos um método diferente: um pezão bem assente com o calcanhar do sapato. Acontece que a sala era a última dum longo corredor e, além disso, tinha a fechadura da porta avariada. Nos intervalos, quando não havia ninguém por perto, entrávamos na sala e cada um escolhia uma cadeira das em pior estado. Pegávamos num giz e fazíamos um círculo no meio do tampo para fazermos pontaria (como se fosse preciso!). Erguíamos o pé direito e zás!, ou melhor, crrr!, um buraco se abria com as farpas finas, bicudas e irregulares do contraplacado a apontar para baixo. A forma assemelhava-se a um tronco de cone invertido, em que as farpas eram geratrizes partidas e irregulares. A nomenclatura da Geometria Descritiva dominava-a eu bem, pois era a minha melhor disciplina, curiosamente, lecionada naquela sala. Investida após investida, ia aumentando o número de cadeiras com o fundo partido, ou escaqueirado, se lhe déssemos mais do que uma pezada. As que ficavam em pior estado eram colocadas em monte, a um canto da sala. Esse monte chegou a ser uma montanha quase até ao teto, com vinte e tal cadeiras empilhadas ao calhas. Essas cadeiras eram substituídas por outras igualmente velhas, porque as novas tardavam em chegar. Claro que se tentou descobrir quem fazia aquilo, mas só se soube quando duas colegas nos denunciaram, preocupadas que nos viéssemos a tornar marginais. Terão dito isso. Confessámos a autoria dos disparates, que fizemos por sabermos estar prevista a substituição das cadeiras. Talvez por isso, não tivemos de as pagar. E só nos foram aplicados dois dias de suspensão, por não termos antecedentes e sermos bons alunos. A minha mãe, coitada!, apanhou uma tristeza tão grande que só se lamentava com o sucedido. Nem forças teve para me castigar. Mas como não voltei a fazer nada que a desiludisse, com o passar do tempo recuperou o orgulho que tinha em mim.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -