janeiro 16, 2022

Corações ao alto!

Confinavam as traseiras da casa dos meus pais com as duma família oriunda de Alcáçovas, sendo Valdemiro o nome do homem, polícia de profissão, mas que eu nunca vi fardado. O papel dele na instituição era concertar sapatos e servir no bar da polícia de Setúbal. Tinha três cágados no quintal, roubados (coitados!) às ribeiras do vale do Sado, que tratava por nome de gente. Peeeedro!, chamava um deles, prolongando a primeira sílaba num tom de quase cana rachada, e o animal aproximava-se, no seu possível passo lento, para receber pedaços de salsicha. A partir de certa altura, o vizinho Valdemiro estava quase sempre em estado de semiembriaguez, sempre pacífico e pachorrento, falando devagar e pausadamente, com os olhos turvos de humidade. Certa vez, ia eu no autocarro do centro da cidade para o bairro onde morávamos, entra ele umas paragens mais adiante. Cumprimenta o motorista e logo percorre o autocarro com os olhos, em busca de alguma cara conhecida, entre os poucos passageiros. Assim que depara comigo, nas filas do fundo, ergue os braços e diz, como se orientasse uma cerimónia religiosa, Tooooino!, corações ao alto! Os gestos, o olhar, a frase e o tom de voz em quase falsete com que a disse, deixaram-me ruborizado de vergonha, mais ainda quando os olhares de alguns passageiros se viraram para mim. Esta tornar-se-ia a recordação mais forte que guardo dele, agora com muito agrado. O vizinho polícia, como nas redondezas lhe chamavam, morreria de cirrose por volta dos 60 anos. Há pouco tempo contei esta história ao meu amigo José Luís. Por isso, quando lhe telefono ou apareço na sua casa, é frequente ouvi-lo dizer Toooino!, corações ao alto!

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -