Cruzo-me de vez em quando com um pastor e seu rebanho de cabras e ovelhas. Terá cerca de setenta anos e é seco. Parece ter secado ao sol e ao vento de tantas caminhadas. Quando o cumprimento nem sempre retribui, e quando retribui revela mau-feitio. É como é, mas não deixo de o cumprimentar por isso. Há umas semanas vimo-lo, eu e a minha mulher, de canadianas com o seu rebanho. Impressionou-nos a imagem dum pastor a conduzir o seu rebanho de canadianas, claramente debilitado. A minha mulher perguntou-lhe o que tinha, ele respondeu tratar-se de problemas de coluna. Desejámos-lhe melhoras e ele agradeceu. Depois dessa ocasião vimo-lo mais uma meia-dúzia de vezes à distância, e com as canadianas. Entretanto, passaram semanas sem o vermos e eu questionava se ele teria ficado sem capacidade de conduzir o seu rebanho. Mas há dias, ao final da tarde, demos por ele, ainda de canadianas, mais magro e de andar mais débil. Vinha na nossa direção, com três cães que, de imediato e com precisão, reagiam às suas indicações de assobios e de poucas palavras. Vai à frente!, Olha aquelas!, Vai lá, vai! Em correrias frenéticas, os cães seguravam o avanço do rebanho para que não se afastasse muito do pastor. Parámos para que, mais próximos, lhe pudéssemos falar. Como tem passado?, perguntou a minha mulher. O problema das costas está na mesma, mas agora estou com outro que me preocupa mais, respondeu com ar pesado. O que é?, perguntei. O homem balbuciou um pouco e hesitou na resposta. Encostou a mão ao peito, respondeu É aqui, soltou um choro breve que logo controlou e concluiu, Assim que chegar a casa vou para o hospital. Oh, caramba!, disse eu quando ele já me virava as costas, As melhoras! Não agradeceu, continuou o seu caminho e eu fiquei a pensar se seria aquela a última jornada do pastor de mau-feitio.
- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -