Deparo regularmente com um homem e a sua bicicleta, ora subindo, ora descendo uma avenida de Setúbal, por vezes andando pelo centro da cidade e raramente estando sentado nalgum banco ou numa cadeira de esplanada. É um homem baixo, farto de cabelo escuro e de barba branca, sempre vestido de preto e com um chapéu na cabeça, da mesma cor. Sempre o vi assim, acompanhado pela sua bicicleta; nunca o vi com ninguém, nem sequer dirigir a palavra a alguém, assim como nunca vi ninguém dirigir-lhe uma palavra. Deparo com este homem há cerca de trinta anos. Ele terá agora perto de oitenta, mas sempre o achei velho, talvez por há três décadas ele me parecer isso por eu ser novo. Os seus olhos pequenos, escuros e recuados, pouco se movimentam, e o seu olhar vago nunca foca nada de concreto. Tem um alto esférico e luzidio na fronte, ao lado do olho direito, do tamanho do bugalho dum carvalho: um tumor que parece prestes a rebentar. Anda devagar, como sempre me lembro de o ver, com a sua bicicleta pela mão, ao longo de várias centenas de metros, às vezes com um atrelado onde leva compras. Só o vi montado uma ou duas vezes, não mais. Sei deste homem apenas aquilo que vejo dele, mas facilmente sou levado a presumir que ele viva sozinho, talvez viúvo e sem filhos, talvez desligado de família e sem amigos. Não sei onde mora, mas se tiver vizinhos imagino que nem fale com eles. A bicicleta é, acima de tudo, a sua companhia, ou a sua companheira, que o acompanha de mãos dadas, mas muda. O homem carrega uma tristeza de indiferença, com um rosto de pedra onde não se consegue esculpir um sorriso, nem uma expressão que agrave aquela que tem. Ocorre-me só agora, no momento em que escrevo estas linhas, que talvez um dia o siga para saber onde mora, por mera curiosidade; assim como me ocorre que talvez um dia meta conversa com ele, pelo menos para ver se ele sabe, consegue ou quer falar.