março 30, 2022

Altos contrastes - IV

Não é caso para dizer, como Goethe, Ver Nápoles e depois morrer. Aliás, um dia depois de lá estar ocorreu-me Ver Nápoles e não voltar, mas fui injusto e precipitado com tal frase, pois passados mais um ou dois dias, à medida que me fui integrando naquele aparente caos e naquelas ruas escuras e sombrias (e sujas!, não esquecer), já pensava em Ver Nápoles e voltar!, como penso fazer com Roma, Florença e Veneza, onde já estive. Nestas, o impacto do seu charme é imediato; mas Nápoles conquista-se, com um olhar atento e escolhas cuidadas. Andar pelas ruas, ir a algumas catacumbas, visitar o Museu Nacional de Arqueologia, o Duomo e a Capela de Sansevero, olhar para o mar e para as ilhas em frente, olhar para o majestoso e assustador Vesúvio, passar por alguns mercados de rua, entrar ou apenas olhar para as montras de muitas lojas e lojinhas, ir a este ou àquele pequeno restaurante só porque nos cativa por uma qualquer particularidade, e muito, muito mais, não são coisas para cinco ou seis dias. A cidade tem muito para ver, e muito disso não está à frente dos olhos, nem ao lado. É preciso ir lá: bater às portas, descer aos buracos, subir escadarias, andar a pé, ou de metro, ou de autocarro, ou de táxi, ou de motoreta, ou de trotineta. Também é importante falar com as pessoas, mesmo que o que digam não pareça (ou não seja, mesmo) fidedigno. Faz parte. Os enormes palácios, que são muitos, com as suas grandes portas e pátios interiores, e com pés-direitos para gigantes, esmagam a pequenez da nossa escala humana. Mesmo com a tinta e o reboco a cair, alguns em estado de pré-ruína, nos cativam por qualquer particularidade; outros até cativam pela falta de beleza e pelas formas incaraterísticas, dificilmente enquadráveis num estilo, ou num só estilo. As ruas estreitas de alguns bairros, com prédios antigos, altos e de aparência pobre, oprimem por sufoco visual e falta de luz. Mas com poucos passos se chega a uma praça ampla e aberta, e logo o nosso psiquismo momentaneamente abalado se recompõe. E se apronta para mais umas voltas pela cidade, ou começa a planear sair para o muito que há para ver fora dela, por outras paragens.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -