julho 19, 2022

Do paraíso ao inferno

O paraíso e o inferno estão muitas vezes ao nosso lado. Durante os tempos duros do confinamento, habituei-me a fazer trajetos regulares a pé pelas imediações: pela Várzea, junto a um campo de sobreiros, quintas e horta dos prisioneiros; pela estrada da lagartixa, que vai por um pequeno vale ao lado duma ribeira, entre o monde de Palmela e a serra dos Gaiteiros, tão verdejante; às vezes seguia daí pelo vale dos Barris ou ia até à crista da serra do Louro, ponteada de moinhos, alguns em bom estado, um deles em funcionamento; pela estrada da jibóia, que vai para o alto dos Gaiteiros, por meio de arbustos altos e pinheiros mansos de largas copas; pela estrada romana (assim lhe chamam, mas é medieval, feita pelos mouros), que vai para o castelo de Palmela, de onde se pode ver tudo o que descrevi antes, além de Setúbal e o Sado a sul, e de Lisboa e o Tejo a norte. Pela estrada da cobra, que passa perto do castelo, nunca me meti a pé, pois por lá passam regularmente automóveis que levantam muita poeirada branca que suja e dificulta a respiração. São estradas de terra batida (menos a medieval, que é um caminho pedestre com partes calcetadas) que partem todas da Baixa de Palmela, onde moro, e passam por recantos que são pequenos paraísos. O velho Jaquelino, que tem uma terreno de dez hectares no meio da zona mais verdejante, e que lá passa muitos dos seus dias, a limpar, cavar, regar e a afugentar os javalis, diz, com a sua voz rachada mas com timbre de paixão Isto é um pequeno paraíso, não é? Pois, esse pequeno paraíso transformou-se num inferno, que não direi ser pequeno. Numa tarde ardeu toda a vegetação que acabei de descrever, à exceção da Várzea, onde o fogo não chegou. Devido a uma intervenção cirúrgica dos bombeiros, as casas habitadas foram todas poupadas pelo fogo, que andou a uma centena de  metros da minha. A coisa esteve muito feia para algumas habitações, de onde os moradores tiveram de sair, por sugestão da proteção civil. Eu e a minha mulher saímos também, por sugestão minha, e passámos a noite no meu ateliê, em Setúbal, a seis quilómetros de casa. O final de tarde e princípio da noite estavam incertos e jogámos pelo seguro, antes que a povoação ficasse cercada pelo fogo ou todos os acessos fossem cortados. Mas, já controlado, de noite o fogo já não progrediu mais. Agora olha-se para aqueles vales e encostas e está tudo queimado, preto de carvão, cinzento e branco de cinza. E agora? Como e quando se repõe aquela vegetação, tão rica de tanta coisa de que não sei os nomes? E os animais que ali viviam, que é feito deles?: javalis, texugos, saca-rabos, cobras, lagartos, lagartixas, ratos, abelhas, grilos, rãs, sapos, ouriços, etc., etc. E os cavalos e os burros da quinta onde os havia, ter-se-ão salvo? E o que se passará na alma de quem cuidava destes recantos e os conhecia desde criança? Nos últimos encontros que tive com o Jaquelino, ele disse-me que quando quisesse podia entrar na quinta e ir vê-la, encostas acima e abaixo. Não cheguei a fazer isso, ficando sempre na estrada a falar com ele, às vezes bem longe de mim. Hei de ir ter com ele, pois certamente estará lá, no carvão e nas cinzas da sua quinta, a fazer com que volte a ganhar vida, uma vida que a sua já não permitirá ver. E vou querer ajudá-lo, entrando finalmente, não no seu pequeno paraíso fresco e colorido, mas num inferno, escuro e sem vida.

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -