março 22, 2022

Altos contrastes - II

Por baixo de Nápoles há outras cidades, outras histórias. Catacumbas, hipogeus, antigas pedreiras, túneis, esconderijos. Ao longo dos séculos e dos milénios, desde os gregos, que fundaram a cidade, esses espaços foram habitados e utilizados para os mais diversos fins: cerimónias religiosas, enterros, guardar mantimentos, depositar material devoluto, esconder de perseguições e guerras, etc. Mas cá fora, acima do chão, é a loucura do trânsito e da sujidade. Os semáforos dos peões estão verde por quatro a seis segundos e amarelos por dez a quinze. O trânsito está feito para os veículos motorizados. As pessoas que se adaptem e se safem como puderem. Conduz-se falando ao telemóvel, seja de carro, de motoreta ou de bicicleta, mesmo nas barbas da polícia, que deve ser a mais tolerante do mundo, desde que do comportamento das pessoas nada surja que perturbe grandemente. Surgem carros e motoretas em sentido contrário e em sentido proibido, mas daí não vem mal a ninguém. Há muita gente simpática e prestável, e algumas pessoas brutas e até repugnantes. Num restaurante são capazes de nos dar atenção como se fôssemos amigos, numa loja são capazes de nos dizer que já fechou e não nos deixar entrar, mesmo ainda dentro do horário de funcionamento. Dos primeiros desejamos manter contacto, os outros não queremos voltar a ver. Alguém terá elevado Maradona à categoria de santo, e por todo o lado há imagens dele, desde peças de roupa a pequenos altares. Poucos falam italiano, porque falam napolitano, de onde entendo sem dúvidas apenas uma em cada dez palavras. Mas muitos falam espanhol e ou inglês, ou tentam. Em geral, comunicamo-nos e entendemo-nos quando basta querermos. O que é mais difícil de entender é a quantidade de pedintes e de sem-abrigo que há na cidade. Nunca dei tanta esmola a tantas pessoas em tão poucos dias, sobretudo a negros completamente desenquadrados e de ar assustado, certamente recém-refugiados de África. Há sem-abrigo a dormir em qualquer sítio, desde um recanto envergonhado, a um passeio movimento numa rua comercial das mais concorridas. 

- do projeto Sincrónicas e anacrónicas -